22/02/2020

Por que Bernie Sanders pode ganhar?

Na disputa pela candidatura do Partido Democrata, um nome está se descolando do resto e aparecendo na liderança sozinho. Ele é Bernie Sanders, um senador de Vermont que se define como um socialista democrático. Na sua plataforma de governo, há diversas propostas para diminuir a desigualdade através de intervenção estatal. Entre elas, um imposto sobre "fortunas extremas" que começa em 1% para quem possui mais de US$32 milhões em bens e vai até 8% para quem tem mais de US$10 bilhões. O imposto não incide sobre a renda, mas sobre os bens, e o objetivo é "em 15 anos, cortar pela metade o patrimônio dos bilionários". Além disso, ele apoia o "New Deal Verde" (1), um plano para transformar a matriz energética dos EUA e chegar a 100% de energia renovável em 2030, ou seja, por meio de leis e regulação, vai atacar de frente a indústria de hidrocarbonetos.

Na parte social, ele quer expandir o Social Security para dar cobertura de saúde para todos os habitantes dos EUA e diminuir os preços dos remédios. Para habitação, propõe um investimento de US$2,5 trilhões para construir 10 milhões de casas populares. Na sua plataforma, também há um plano para cancelar US$1,6 trilhão em dívidas estudantis de 46 milhões de jovens. Em resumo, todo mundo ganharia algo "de graça" com Bernie presidente - menos os bilionários, donos de empresas da área de saúde, de petroleiras, etc.

As falas e os planos dos candidato batem de frente com séculos de cultura dos EUA e, talvez mais importante, com interesses poderosos. A influência das corporações na política é notável. Bilhões fluem delas para os congressistas, senadores, etc., através de lobistas e da "porta giratória" (2). Ao mesmo tempo, elas são as financiadoras da grande mídia e raramente um ponto de vista que as antagonize é transmitido aos cidadãos. Ou seja, há uma enorme vontade de acabar com a candidatura de Sanders.

Bernie Sanders num comício em Nevada. Foto: Washington Post.

O problema é que nesta edição de 2020, alguns fatores se alinharam para que ele despontasse em popularidade. Primeiro, a economia. A taxa de desemprego se encontra na mínima histórica, mas isso não significa que o mercado de trabalho esteja bom. Isso porque se você trabalhou por duas horas na última semana, com remuneração, você é considerado "empregado" nos EUA. Quem está desempregado e desistiu de procurar emprego não entra na conta do desemprego. Isso resulta num total de 95 milhões de estadunidenses acima de 16 anos fora do mercado de trabalho, além dos quase 6 milhões de desempregados oficialmente. Numa população total de 327 milhões, isso significa que cerca de um terço está em situação muito precária. E entre os 165 milhões de trabalhadores empregados, cerca de 148 milhões ganham pouco mais que dois salários mínimos, em média. Por isso, quando Bernie fala da injustiça do sistema dos EUA, que deixa a maior parte da população nessa situação enquanto faz a fortuna do 0.1% mais rico se multiplicar nos últimos anos, ele encontra muitos pares de ouvidos dispostos a escutar.

O segundo fator é o grande número de pessoas tentando a vaga de candidato(a) democrata. Isso faz com que não haja um rival forte contra Sanders, que terminou em primeiro lugar no voto popular nas duas primárias que já ocorreram. Joe Biden, ex-Vice Presidente de Barack Obama, era o favorito no início mas o resultado das duas primárias iniciais praticamente acabou com suas chances, tendo terminado em quarto lugar em Iowa e quinto em Nova Hampshire. A senadora Elizabeth Warren, endossada pelo New York Times, e considerada a rival mais direta de Sanders, terminou em em terceiro e quarto lugares. Pete Buttigieg, ex-prefeito de South Bend, Indiana, tem o apoio de parte do aparato Democrata que quer desesperadamente colocar um centrista na eleição para presidente, e acabou em segundo lugar nas duas, porém ficou com mais delegados que Sanders.

O terceiro fator é a força que ele tem contra seu possível adversário, Donald Trump. Um participante formidável em debates, Trump emplaca apelido atrás de apelido, mexe com a parte psicológica e assim enfraquece e desmoraliza seus rivais. Num exemplo emblemático das eleições de 2016, ele deixou Jeb Bush visivelmente alterado num debate (Jeb desistiu pouco depois). Muito antes de Warren lançar sua campanha, ele chamou atenção para o fato de que ela se autodeclarou "indígena" ao aplicar para uma vaga em Harvard, e lhe deu o apelido de "Pocahontas". Desafiada, a senadora fez um teste de DNA que mostrou que ela era apenas 0,005% indígena. O apelido pegou de vez e ela ficou com a fama de mentirosa.

Joe Biden, um dos candidatos mais velhos no certame, é propenso a se confundir e seu ritmo de fala não é dos mais enérgicos. Isso lhe deu o apelido de "Sleepy Joe" (Joe Dorminhoco). Depois, virou "Creepy/Sleepy Joe", (Joe Asqueroso/Dorminhoco), uma referência às diversas vezes que Joe foi gravado acariciando mulheres e crianças de maneira estranha. Michael Bloomberg, que recentemente se juntou a corrida, se tornou "Mini Mike", uma referência a sua baixa estatura - ele já se utilizou de um banquinho para parecer mais alto no púlpito. Sanders, por sua vez, só foi chamado de "Crazy Bernie" (Bernie Maluco) e "The Nutty Professor" (O Professor Aloprado), que comparado com os outros, são bem mais leves. Ou seja, parece que até para Trump o senador socialista tem menos pontos fracos que os outros. Ele mesmo admitiu, num áudio recentemente vazado, que seria mais difícil bater Hillary em 2016, se ela tivesse escolhido Bernie para ser seu parceiro como Vice-Presidente.

Além disso, já nas eleições de 2016 as pesquisas apontavam que Sanders ganharia com facilidade uma disputa direta com Trump, algo que os Democratas ignoraram completamente, jogando seu peso em Hillary Clinton, que tinha margens bem mais apertadas. As pesquisas, aliás, erraram muito nas eleições de 2016 - até a véspera, as chances de Clinton ganhar eram de 90%, de acordo com uma delas - e parecem estar errando novamente, já que Biden, que teve uma performance muito fraca, era considerado o favorito chegando em Iowa. Por outro lado, elas também apontam uma vitória de Bernie caso ele chegue até a corrida final.

O quarto e último fator é que o atual presidente não é muito popular. Ele assumiu com 45% de aprovação, foi caindo, e passou o primeiro ano da presidência abaixo de 40%. Barack Obama, por exemplo, logo que assumiu passou seis meses com aprovação acima de 60% e em oito anos de mandato nunca ficou abaixo de 40%. Trump só recentemente chegou perto de 50% de aprovação. Ou seja, por mais que ele seja o presidente em exercício, que sempre traz benefícios, sua eleição está longe de ser uma certeza.

Tudo isso faz com que o senador, além de ter chances muito reais de ganhar as primárias e ficar cara-a-cara com Donald Trump, também tenha um caminho para ganhar a presidência e se tornar o primeiro presidente socialista dos EUA. Essa ideia deve arrepiar os cabelos daqueles poderosos interesses descritos acima, que com certeza não estão assistindo tudo isso parados. Aparentemente, um dos planos agora é se unir sob a candidatura de Michael Bloomberg, ex-prefeito de Nova Iorque, na esperança de que ele ganhe algumas centenas de delegados e impossibilite uma vitória de Sanders na convenção do partido em julho. Sem um vitorioso lá, as regras mudam e a elite do partido tem muito mais liberdade para escolher seu candidato - e aí poderão colocam Bloomberg ou Buttigieg, mesmo que isso signifique perder as eleições para Trump. Pelo menos, os bilionários poderão dormir tranquilos.

(1) Uma referência ao New Deal de Franklin D. Roosevelt, um plano de obras públicas que ajudou a reerguer a economia estadunidense após a crise de 1929.

(2) A "porta giratória" ocorre quando um congressista sai do serviço público diretamente para um emprego numa corporação que se beneficiou de alguma decisão feita por ele durante seu mandato. Depois ele volta pro Congresso, e assim em diante.

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