11/02/2020

Vem aí um novo "ataque químico" na Síria?

A guerra civil na Síria ainda não acabou. O conflito, de "civil", só tem o nome. A realidade é que os Estados Unidos da América e seus aliados no Oriente Médio canalizaram bilhões de dólares para organizações paramilitares numa operação de mudança de regime, disfarçada de intervenção pró-democracia. O objetivo não é, nem nunca foi, "libertar" o povo da Síria do ditador Bashar Al-Assad, e sim instalar um governo que esteja completamente alinhado com os interesses do bloco liderado pelos EUA. O país é apenas um dos alvos mais recentes do impulso dos EUA por hegemonia total ao redor do globo. Antes dele, eles invadiram o Afeganistão e o Iraque e instalaram centenas de bases lá, cercando o Irã, e também bombardearam a Líbia, resultando na queda de Muammar Gaddafi. Este último era um dos países mais ricos da África, e se transformou numa terra sem lei, com várias facções disputando o poder e travando uma guerra sangrenta.

O documento da DIA, disponível aqui. Se a versão com diversos cortes já revelou tanto, o que será que está atrás das partes censuradas?

No início da guerra na Síria, começou a ascensão do Estado Islâmico, até então uma pequena organização paramilitar iraquiana, que surgiu durante a ocupação dos EUA no país. Um documento da DIA (1) de agosto de 2012, avaliando a situação na Síria, já concluía que havia a possibilidade do estabelecimento de um califado sunita radical na região de fronteira entre a Síria e o Iraque. Segundo o documento, os "países do Golfo" (provavelmente se referindo a Qatar, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos) queriam isso, com o objetivo de isolar o regime sírio. Em junho de 2014, o califado do Estado Islâmico foi declarado e ao longo de cinco anos, o EI teve sua ascensão e queda, sem que Bashar Al Assad perdesse seu posto. A intervenção decisiva da Rússia, começando no final de 2015, virou o jogo e fez o domínio da organização terrorista minguar. Em dois anos, duas cidades chave para o EI, Aleppo e Deir ez-Zor, foram retomadas pelo governo sírio.

Então, em abril de 2018, com o exército sírio avançando e retomando território rebelde, um suposto "ataque químico" contra os rebeldes ocorreu na cidade de Douma, próxima a capital, Damasco. Imediatamente, fotos de crianças vítimas do ataque estamparam as capas dos principais jornais e a comunidade internacional condenou o governo de Assad, mesmo sem provas, como documentado aqui neste blog. Antes mesmo da chegada da missão da OPCW (2), o órgão responsável pela fiscalização do uso de armas químicas, os EUA lançaram um ataque com mísseis contra uma base síria. O Presidente Trump foi aplaudido pelos experts por seu pulso firme e até críticos do presidente saudaram o ataque como um ato especialmente digno do cargo. As derrotas dos terroristas ficaram em segundo plano e a ideia do "ditador monstruoso" foi renovada para a opinião pública.

O suposto ataque químico foi questionado pelo governo sírio e pelos russos, que exigiam provas. Muitos analistas, incluindo este blog, também expressaram seu ceticismo, já que esse ataque não fazia o menor sentido do ponto de vista estratégico e a organização envolvida na alegação, os Capacetes Brancos (White Helmets), tinham um histórico de envolvimento com os serviços clandestinos dos EUA e Reino Unido. No entanto, esse ponto de vista não foi discutido na grande mídia, que preferiu servir ao público exatamente a versão que a Casa Branca gostaria, como sempre. Assim que a investigação oficial da OPCW começou, houve um rumor de que ela estava contaminada, ou seja, que não seria uma investigação parcial. Um relatório confirmando a presença de uma arma química a base de cloro foi divulgado, e analistas independentes prontamente questionaram o documento, alegando que não havia nenhuma prova de que o agente químico veio de uma bomba disparada por um helicóptero, como se supunha. Além disso, nada indicava uma potência militar no cloro encontrado, ou seja, os vestígios encontrados poderiam ser de água sanitária, dessas que se encontra em qualquer residência.

As capas da grande mídia no dia do suposto ataque químico em Douma. Cenas do próximo capítulo?

Passado um ano e meio, aqueles rumores de uma investigação enviesada foram confirmados por um vazamento ao Wikileaks, que foi completamente ignorado pela grande mídia e de boa parte da mídia alternativa também. Um engenheiro que foi à Douma reclamou ao Wikileaks que seus achados foram completamente ignorados no relatório final. A organização juntou um painel, que incluiu o ex-presidente da OPCW, o brasileiro José Bustani, para ouvir as alegações e ler os documentos providenciados pelo engenheiro. A conclusão do painel foi de que a OPCW não obedeceu o próprio regulamento ao suprimir as opiniões dissidentes de engenheiros e investigadores, e pedia que as conclusões do relatório oficial fossem revistas. Posteriormente, mais documentos vieram à tona, incluindo um rascunho do relatório final que mostrava várias informações cruciais que foram retiradas ou omitidas na versão do relatório que foi divulgada.

Atualmente, os terroristas da Tahrir al-Sham, a "Al Qaeda da Síria", dominam a cidade de Idlib, próxima a fronteira com a Turquia. Este é um dos últimos bastiões dos rebeldes, que declararam a cidade a capital do "Governo de Salvação Sírio". O Exército Sírio está chegando perto e tomou a cidade de Saraqib nos últimos dias. A situação, portanto, é similar a que Douma se encontrava quando o suposto ataque químico ocorreu. A opinião pública não está acompanhando o avanço das forças governamentais, pois isso não interessa aos EUA. É nesse contexto que o Ministério da Defesa russo recebeu uma informação de que os rebeldes podem tentar fazer uma encenação de um ataque com armas químicas, para tentar forçar a mão dos EUA e seus aliados e fazê-los atacar as forças do governo sírio. Segundo as informações, a equipe que encenará o ataque está próxima a Idlib e inclui membros dos Capacetes Brancos.

Caso as informações estejam corretas, é de se esperar que nas próximas semanas fotos de crianças sofrendo por um suposto ataque químico estampem, simultaneamente, todos os jornais de renome internacional. Nesse dia, os jornais vão ignorar por completo o aviso recebido e divulgado pelo Ministério da Defesa russo; não haverá nenhuma discussão sobre a validade estratégica de Assad fazer um ataque desses neste momento; quase ninguém vai exigir uma investigação completa da OPCW antes de pedirem uma ação militar contra o "ditador monstruoso"; e o suposto ataque em Douma será mostrado como uma prova do que Assad é capaz, ignorando totalmente os vazamentos divulgados pelo Wikileaks, que põem toda a narrativa em questão.

Notas:

(1) - Defense Intelligence Agency, Agência de Inteligência de Defesa, o braço de inteligência das Forças Armadas dos EUA.
(2) - Organization for the Prohibition of Chemical Weapons, Organização pela Proibição de Armas Químicas, com sede em Haia, na Holanda.

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