10/03/2022

Que lei internacional? - Um contexto da guerra na Ucrânia

Surpreendendo muitas pessoas, incluindo este blog, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, ordenou uma ofensiva militar contra a Ucrânia, sob o pretexto de se defender de ameaças ucranianas e para "des-nazificar" o país. Numa guerra, o lado mais fraco é sempre o dos civis dos países envolvidos, que na maioria das vezes sequer apoiam o início dos conflitos - por isso, prestamos toda a solidariedade aos ucranianos, aos russos, bielo-russos e outros tantos que serão afetados pela destruição, pelas mortes e pelas migrações forçadas resultantes da guerra. A guerra entre duas ou mais nações é fruto de disputas pelo poder que o cidadão comum raramente se envolve, e muitas vezes sequer compreende. Esta guerra, em particular, está causando um grande impacto e chamando a atenção do mundo inteiro, um aspecto muito interessante para este autor, que acompanha conflitos ao redor do mundo há uma década. Este texto não pretende entrar em detalhes sobre o conflito em si, mas dar um passo para trás e olhar para outros aspectos.

A ação russa é terrível. A guerra, apesar de acompanhar toda a existência do ser humano, tomou proporções muito mais destruidoras com o surgimento de armas mais poderosas, como os mísseis e bombas, chegando até o horror absoluto da bomba nuclear. O século XX, com as duas guerras mundiais, mostrou o potencial devastador do uso desses armamentos. Atualmente, portanto, qualquer guerra pode evoluir para uma situação realmente trágica, e quando o líder de um país decide ordenar um ataque, as consequências são claras. Especialmente após a II Guerra Mundial, com os julgamentos dos crimes de guerra nazistas em Nuremberg - onde a própria decisão de atacar um país foi considerada o crime supremo - e do surgimento da ONU - cujo propósito, declarado em seu primeiro artigo, é "manter a paz internacional" - a guerra passou a ser, pelo menos em teoria, algo absolutamente condenável.

Na prática, porém, as leis e tratados internacionais tem uma capacidade limitada de restringir as ações dos países, e menos de dez anos depois da assinatura do Tratado da ONU, por exemplo, uma grande guerra ocorreu na Coreia, dividindo o país, causando muitas mortes e consequências que são sentidas até hoje. A ONU, inclusive, legitimou que uma coalizão de países - composta principalmente por forças dos EUA - entrasse na guerra do lado sul-coreano, já que, segundo a ONU, os norte-coreanos foram os agressores, ao ultrapassarem o paralelo 38. Outra ação militar agressiva com efeitos que duram até hoje, também legitimada pela ONU, foi a criação do estado de Israel em 1947, que resultou na guerra da Palestina em 1948 e num conflito praticamente constante desde então, com fases agudas como a Guerra de Gaza em 2014, com quase 3 mil mortos nessa ocasião. Nas décadas seguintes, no contexto da Guerra Fria, houve uma série de conflitos armados, guerras civis e golpes militares, sendo os maiores a Guerra do Vietnã, que os EUA participaram de maneira bastante unilateral (sem o apoio de uma resolução da ONU), e a Guerra do Afeganistão, na qual a URSS invadiu o país e os EUA financiaram extremistas islâmicos para combatê-la. 

Com o fim da Guerra Fria, surgiu a ideia dos "dividendos da paz", ou seja, a noção de que os países diminuiriam seus orçamentos militares com o fim das hostilidades entre EUA e União Soviética, trazendo a possibilidade de mais investimentos em outras áreas como educação, saúde e defesa dos direitos humanos. Os EUA, porém, tinham outros planos, e na década de 90 invadiram o Panamá, atacaram o Iraque e conduziram operações de guerra na Somália, por exemplo. A ONU declarou que a operação no Panamá foi uma violação de seus artigos, mas autorizou a guerra no Iraque. A Guerra na Iugoslávia, que incluiu conflitos na Croácia, na Bósnia, na Eslovênia, no Kosovo e na Sérvia, também ocorreu na esteira do fim da Guerra Fria, entre 1991 e 1995, e foi o último grande conflito militar na Europa, antes da atual guerra na Ucrânia. Nela, a OTAN bombardeou diversas cidades, liderada pelos EUA e com uma posição ambígua da ONU.

Os ataques de 11 de setembro de 2001 resultaram numa enorme onda de militarização e de intervenções por parte dos EUA, principalmente no Oriente Médio. O evento ativou o artigo 5 do tratado da OTAN, ou seja, todos os seus países membros foram convocados a reagir ao ataque e se unir contra o inimigo. O inimigo, inicialmente o Talibã no Afeganistão, acabou tendo sua definição muito ampliada, tanto é que a mesma autorização de George W. Bush de 14 de setembro de 2001 foi renovada de ano em ano, para justificar todas as guerras dos EUA desde então, incluindo a do Iraque, da Líbia e da Síria, que não tiveram absolutamente nada a ver com a al Qaeda e os ataques de 2001. É possível até argumentar que a invasão do Afeganistão poderia ter sido evitada, caso os EUA tivessem aceitado a oferta do governo talibã de entregar Osama bin Laden, e tratado o ataque como um crime e não um ato de guerra. A ideia de que a guerra seria uma operação rápida foi desmascarada pelo fato de que as Forças Armadas dos EUA construíram enormes bases militares no país, que foram essenciais para a guerra seguinte, no Iraque.

No livro The Price of Loyalty, o premiado jornalista Ron Suskind descreve como o Secretário do Tesouro de Bush, Paul O'Neill, participou de uma discussão sobre uma possível guerra no Iraque na primeira reunião do Conselho de Segurança Nacional (órgão máximo da Casa Branca para assuntos estratégicos, militares e clandestinos), em janeiro de 2001, ou seja, muito antes dos ataques terroristas. Uma famosa nota descrevendo uma fala do Secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, escrita apenas algumas horas depois dos ataques, mostra seu desejo de reagir atacando Saddam Hussein "ao mesmo tempo". Todos os pretextos para a guerra do Iraque - a inexistente relação com a Al Qaeda, a suposta busca de uma bomba nuclear por parte de Saddam Hussein, os supostos planos de utilizar "armas de destruição em massa" - se provaram falsos. Não houve apoio da ONU. Os EUA escolheram fazer guerra, e fizeram, agindo de maneira unilateral. Vale dizer que se utilizaram de sua estrutura militar na Europa (principalmente suas bases na Alemanha) para fazer a logística da guerra. 

A nota do auxiliar Stephen Cambone, resumindo as ordens de Rumsfeld em 11 de setembro de 2001. No centro, é possível ler "Hit S.H. @ same time. Not only UBL" ("Acertar Saddam Hussein ao mesmo tempo. Não só Osama bin Laden"). Fonte: Mother Jones.

A guerra no Iraque se estende até hoje, a do Afeganistão durou mais de vinte anos, e esses conflitos envolveram também ataques com drones no Paquistão, por exemplo. A próxima grande operação foi na Líbia em 2010, já sob o governo do ganhador do prêmio Nobel da Paz, Barack Obama. Nela, o país mais rico da África ficou destruído e até hoje não há um governo estável por lá. O pretexto oficial era que o ditador Muammar al Gaddafi estaria promovendo estupros em massa e um genocídio, fatos que, como os pretextos do caso iraquiano, também nunca foram provados. Em 2011, começou o conflito na Síria, onde protestos populares se misturaram ataques de grupos armados organizados que tentaram tomar o poder à força, com financiamento de diversas monarquias islâmicas da região e total apoio dos EUA. Eventualmente, após o surgimento do Estado Islâmico, os EUA entraram de vez no conflito, e até hoje estão ocupando ilegalmente certas regiões do país, incluindo a província de Homs, rica em petróleo. Em 2015, a Rússia interveio militarmente à pedido do governo sírio, que conseguiu derrotar a maioria dos grupos rebeldes, incluindo o EI. Nesse meio tempo, em 2014, a Arábia Saudita atacou o Iêmen, após um grupo alinhado com o Irã tomar o poder no país. Essa guerra dura até hoje, e a situação no Iêmen é absolutamente devastadora. Outro ataque importante, que parece de um passado longínquo, mas que ocorreu há apenas dois anos, foi o assassinato do Major-General das forças de elite do Irã, Qasem Soleimani, por meio de um míssil lançado de um drone, ordenado pelo então Presidente dos EUA, Donald Trump, um ato de guerra que felizmente não teve maiores consequências. 

A tensão na Ucrânia, por sua vez, se iniciou há muito tempo, principalmente por causa do avanço da OTAN em direção a fronteira russa. A fase mais aguda, por sua vez, começou com o golpe de estado de 2014, que trouxe um governo declaradamente hostil à Rússia, que por sua vez reagiu anexando a Crimeia, onde há a importante base naval de Sevastópol, que dá acesso ao mar Negro. O conflito no leste da Ucrânia está acontecendo desde então, mas agora os russos trouxeram seu envolvimento militar para outro patamar, avançando para dentro das fronteiras do seu vizinho após grandes manobras de equipamento e tropas. Como já disse, este texto não pretendeu entrar em detalhes sobre o conflito em si, mas uma boa análise, do excelente Aaron Maté, pode ser encontrada aqui.

O objetivo deste panorama foi mostrar que, mesmo após a criação da ONU e dos horrores das Guerras Mundiais, a guerra nunca deixou de fazer parte do cenário internacional, e, principalmente, que nunca há consenso sobre a legitimidade de cada um dos conflitos. O mundo não é dominado por instituições que mantêm a paz, nem por potências que não fazem guerra. A intervenção da Rússia na Ucrânia, portanto, não ocorre num vácuo. Uma grande diferença, agora, é que o agressor é um país cuja imagem é de "vilão", e não de "herói", o que explica parte da forte reação da opinião pública e da mídia, que vem acompanhando o conflito diariamente. Subitamente, portanto, a lei internacional foi redescoberta, por causa de sua "violação" por parte dos russos. Mas até que ponto ela realmente existia?

15/02/2022

Quem quer fazer guerra na Ucrânia?

O mundo iniciou o ano de 2022 ouvindo o pesado som dos tambores da guerra. Segundo o governo dos EUA, a Rússia quer invadir a Ucrânia "a qualquer momento". Em resposta a essa suposta ameaça, a Casa Branca intensificou o envio de armas para os ucranianos, governados desde 2014 por políticos alinhados com os estadunidenses. A retórica agressiva domina sua grande mídia: segundo um estudo do MintPressNews, houve uma avalanche de artigos favoráveis a algum tipo de intervenção militar dos EUA em defesa dos ucranianos, contra uma minoria de opiniões de pessoas querendo uma solução diplomática e pacífica. Curiosamente, tanto os ucranianos quanto os russos não param de repetir que não querem entrar em guerra, explicitamente pedindo que os EUA parem com essa perigosa retórica.

A crise começou com a notícia de que tropas russas estavam se movimentando nas fronteiras da Ucrânia, supostamente acumulando forças para invadir o seu vizinho. Os russos alegam que a movimentação faz parte de exercícios militares ordinários, enquanto a grande mídia ocidental diz que essas manobras estão aumentando a tensão. Mas essa narrativa parece reservada apenas para os russos. Os EUA conduzem manobras militares enormes regularmente, e em fronteiras tensas, como a "European Defender", reunindo dezenas de milhares de tropas na Europa e a controversa "Foal Eagle" na Coréia do Sul, fruto de discórdia com os norte-coreanos e que foi cancelada após a cúpula entre o então Presidente Donald Trump e o ditador Kim Jong-Un em 2018 (outras manobras, menores, continuam). Raramente essas manobras são noticiadas na grande mídia. Normalmente, aparecem apenas em veículos especializados em notícias militares, mas como uma simples rotina, sem considerar os efeitos nos vizinhos, considerados inimigos dos EUA.

Outra razão alegada pelos EUA é de que o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, teria intenções expansionistas e autoritárias sobre a Europa. Entrar no conflito do lado dos ucranianos, portanto, seria defender a própria democracia. No entanto, enquanto fazem acalorados discursos para vilipendiar o governo da Rússia (e da China, do Irã, da Nicarágua etc.), os EUA dão apoio militar a mais de setenta por cento das ditaduras do mundo, num levantamento de 2015. Eles também não parecem se preocupar com as centenas de bilhões de dólares em vendas de equipamento militar avançado para a Arábia Saudita, uma monarquia brutal que reprime completamente qualquer oposição, e que decapitou cento e oitenta pessoas em 2019. 

Qual a explicação para a súbita atenção midiática e política sobre os ucranianos? Afinal, os EUA têm a capacidade de intervir militarmente em qualquer lugar do mundo. Por que os jornalistas e especialistas não estão advogando que a superpotência faça algo para acabar com a guerra do Iêmen, considerada pela ONU como o maior desastre humanitário, atualmente? Os estadunidenses e os britânicos estão ajudando os agressores da Arábia Saudita com armas e apoio diplomático. Uma simples mudança de postura poderia ser suficiente para inibir os sauditas. Ou então, a grande mídia poderia se perguntar por que os EUA defendem Israel de maneira intransigente, mesmo com ampla evidência de violações dos direitos humanos dos palestinos? E o que dizer da ocupação ilegal das forças armadas dos EUA no território sírio, mais precisamente na província de Homs, com o objetivo explícito de confiscar o petróleo e atingir as finanças do regime de Bashar al-Assad?

Um revelador estudo do Instituto Quincy Adams parece dar a resposta. A atenção é, muito provavelmente, resultado de um enorme lobby em favor do governo da Ucrânia, que, em 2021, fez mais de dez mil contatos com deputados, senadores, jornalistas e especialistas estadunidenses. Como nota o autor do estudo, em comparação, o influente lobby saudita fez "apenas" cerca de 2.300 contatos. O foco desse esforço é tentar impedir a construção de um oleoduto entre a Rússia e a Alemanha, que contornaria a Ucrânia, privando os ucranianos de bilhões em impostos sobre o trânsito do petróleo russo para a Europa. Para isso, o Senador Ted Cruz e outros aliados propuseram uma lei que sancionaria pesadamente o governo russo, que não passou pelo Congresso - mas outra lei, com ainda mais sanções, já está tramitando no lugar dessa.

Uma das muitas capas de revista retratando Putin como um político maligno. Fonte: Medium.

Apenas o lobby, é claro, não é capaz de explicar toda a crise. Há uma convergência de interesses dos ucranianos com setores importantes da burocracia estatal dos EUA que querem conter o crescimento da influência russa, a todo custo - inclusive argumentando a favor de uma guerra entre as potências nucleares. A grande mídia, que nunca considera legítimas as preocupações dos russos em relação à expansão da OTAN e do estabelecimento de bases militares dos EUA em seu entorno, não traz vozes dissidentes e simplesmente repete as falas dos lobistas. A longa campanha para pintar o Presidente Putin como a encarnação do mal, o diabo em pessoa ou o novo Hitler, cria um clima favorável à narrativa dos EUA como representantes do "bem". De quebra, os CEOs das maiores fornecedoras de equipamento militar comemoram, de forma mais ou menos velada, o aumento das tensões. As quatro maiores estão com as ações em alta neste ano.

O objetivo deste texto não é desdenhar da possibilidade da guerra, mas mostrar que não é apenas a Rússia que está se movendo - os EUA estão influenciando diretamente a situação. Apesar dos belos discursos contra o autoritarismo, a favor da liberdade e da democracia, ou da defesa dos direitos humanos dos ucranianos, o que a máquina estatal, diplomática e militar estadunidense quer é domínio e hegemonia. Eles não suportam a ideia de serem desafiados por potências emergentes. Eles querem ter a capacidade de pressionar e conter todo e qualquer possível adversário - só assim conseguem manter sua posição como a nação "indispensável", o país mais poderoso do mundo. 

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