28/10/2020

Joe Biden ou Donald Trump? Ou será que tanto faz?

A eleição para a presidência dos EUA em 2020 está se juntando ao rol de acontecimentos num mundo em convulsão. O próprio país passa por violentos protestos de cunho racial, algo que não era visto há décadas. A polícia, historicamente racista e sob muitos aspectos ainda assim, passou a ser questionada. A pandemia do coronavírus continua avançando, contaminando cerca de 300 mil pessoas por dia ao redor do mundo. A própria realidade da pandemia é questionada constantemente e o debate sobre o vírus se misturou com as ideologias políticas de cada um. As redes sociais se alimentam da polarização e isolamento da população, manipulando nossas emoções através de algoritmos para nos prender na frente das telas, restritos a "bolhas" sociais, enquanto suas companhias ficam cada vez mais ricas no mercado financeiro. Nesse contexto, a eleição para o 46º Presidente dos EUA está acontecendo.

Como este blog notou, Bernie Sanders tinha chances reais de ganhar as primárias do Partido Democrata, apresentando uma "terceira via" entre o establishment representado por Biden, Hillary e afins, e o "anti-político" Trump. É uma terceira via curiosa, que junta elementos socialistas de distribuição de renda com o welfare state e uma política externa anti-imperialista. Ela funcionou em 2016, gerando muito entusiasmo, mas infelizmente não o suficiente para impedir que o DNC (Comitê Democrático Nacional, a autoridade máxima do Partido Democrata) favorecesse Hillary Clinton, que ganhou a nomeação. 

Desde a minha última visita a este assunto, antes da pandemia, obviamente muita coisa aconteceu, mas há dois fatos que ajudam a entender porque Bernie perdeu a nomeação e Biden a ganhou. O primeiro foi a entrada de Michael Bloomberg na corrida. O anúncio havia sido feito em novembro de 2019, e no final de fevereiro de 2020 ele ultrapassou a marca de US$500 milhões gastos em propaganda, de olho na "Super Terça". Para se ter uma ideia, no final das contas Bloomberg gastou cerca de um bilhão de dólares, sendo 99% desse dinheiro dele próprio. A campanha de Sanders gastou US$200 milhões no total, um quinto do que Bloomberg gastou, sendo que 80% desse dinheiro veio de uma multidão de um milhão e meio de doadores individuais. Parte da estratégia do magnata foi atacar incessantemente Bernie Sanders, então o líder no número de delegados. É a opinião deste autor que o principal objetivo dessa dinheirama era justamente diminuir as chances de Sanders ganhar, já que desde o início Bloomberg sabia que não tinha chances de ganhar a nomeação.

Donald Trump e Joe Biden se enfrentam ao vivo. (Foto: Google Imagens).

O segundo evento foi a súbita saída de alguns candidatos à nomeação, após uma vitória de Biden na "Super Terça" (quando ganhou 680 delegados contra 554 de Sanders). Simultaneamente a suas respectivas saídas, unanimemente deram seu apoio a Joe Biden. Eventualmente, o próprio Sanders cedeu e também endossou Biden, para a surpresa de alguns. Então Joe Biden, o ex-Vice Presidente de Barack Obama, se tornou o candidato do Partido Democrata à Presidência. O próprio Obama relutou em apoiá-lo, somente o fazendo em abril deste ano, diga-se de passagem. 

Mas na prática, no que esses dois supostos pólos da política estadunidense se diferenciam? Certamente não na importantíssima política externa dos EUA. O atual presidente aparentemente tentou cumprir sua promessa de campanha de retirar tropas do Iraque, do Afeganistão e da Síria. No Iraque, até mesmo o governo local exigiu a saída das tropas estadunidenses, numa votação polêmica com um partido inteiro se abstendo. Trump acabou com um programa de um bilhão de dólares da CIA para armar "rebeldes moderados" na Síria, mas manteve uma base dentro do país, à revelia do governo local, e assegurou que uma empresa estadunidense pudesse começar a explorar o petróleo numa área disputada no norte da Síria. Ele também avançou em negociações com o Talibã no Afeganistão, mas foi fortemente questionado por isso. Uma história sobre supostas recompensas que os russos estavam pagando aos talibãs, cuja fonte eram "oficiais de inteligência anônimos", dominou parte do noticiário na mesma época das negociações, levantando suspeitas de que algum grupo de dentro da burocracia militar e de inteligência queria obstruir o processo. De quebra, essa história ajudou a bloquear a sua tentativa de retirar tropas da Alemanha, que os EUA ocupa desde o final da II Guerra Mundial. 

Por outro lado, no início do ano Trump ordenou o assassinato do General Qasseim Souleimani, um herói de guerra iraniano e um dos pilares do governo. De quebra, matou também um importante comandante iraquiano. Na Síria, em abril de 2018, utilizou um pretexto falso de supostos ataques com armas químicas por parte do governo de Bashar al-Assad para destruir com mísseis um dos mais avançados centros de pesquisa científica do país, num ataque conjunto com a França e o Reino Unido. Além disso, apoiou a tentativa de golpe na Venezuela em 2019, empoderando um "líder de oposição" incompetente, Juan Guaidó, que não tem qualquer influência relevante dentro da política e dos militares venezuelanos. Também apoiou o golpe de estado contra Evo Morales na Bolívia, que pôs a racista Jeanine Añez na presidência e desencadeou uma fortíssima repressão aos movimentos sociais e indígenas do país. Este também foi um golpe mal calculado, já que na recente eleição o candidato apoiado por Morales ganhou com quase o dobro de votos que o segundo colocado (Añez sequer foi candidata, no final). Trump fez campanha dizendo que iria sair das guerras intermináveis dos EUA, e diminuir a presença dos militares ao redor do mundo. Na prática, mudou muito pouco o curso da política externa unilateral do país e entrou em aventuras geopolíticas de qualidade duvidosa.

Biden, por sua vez, era vice-presidente quando Obama decidiu bombardear a Líbia sob o pretexto de que o ditador líbio Muammar Gaddafi havia "distribuído Viagra" para promover estupros em massa, uma alegação ventilada pela enviada dos EUA à ONU e ecoada pelo presidente do Tribunal Criminal Internacional, porém jamais provada. Anteriormente, quando senador, apoiou as guerras do Iraque e do Afeganistão e nunca se arrependeu disso, apesar de ter tentado reescrever a história, dizendo que não apoiou a invasão do Iraque. Na realidade, já em 1998, dizia que o único caminho para desarmar o  Iraque era unilateralmente atacando o país e "removendo Saddam". Durante o governo Trump, apoiou entusiasticamente o golpe na Venezuela e se calou sobre a Bolívia. Se for eleito, ele trará uma equipe de relações exteriores composta de ex-membros da administração Obama e de conselheiros de Hillary Clinton, com uma visão que não quebrará o paradigma dos EUA como líder do mundo.

Em momento algum o candidato democrata se alinhou com a ideia de diminuir o alcance das forças armadas dos EUA, ou de buscar uma política externa multilateral, cooperativa. Pelo contrário, sua campanha quer re-estabelecer uma política externa que coloque os EUA em "primeiro lugar", revertendo o suposto isolacionismo de Trump, que na prática, como vimos aqui, nem é tão isolacionista assim. Biden também endossa a ideia de que a China e a Rússia são inimigas dos EUA, reduzindo as possibilidades de que a tensão entre essa potências nucleares diminua. Como a maior parte dos políticos do seu país, ele acredita que a Rússia mudou o curso das eleições de 2016, uma teoria da conspiração baseada em evidências dúbias

Bases militares dos EUA no exterior. (Fonte: Base Nation).

Portanto, se você faz parte dos 99,99% da população mundial que não se beneficia diretamente das aventuras imperialistas dos EUA, suas perspectivas para esta eleição são desanimadoras. Independentemente de quem ganhar, a postura de "policial mundial" do nosso vizinho do norte não irá mudar. Além disso, a possibilidade de outros golpes de estado contra governos que não se dobram aos interesses deles continuará viva. O Pentágono não irá fechar suas centenas de bases ao redor do mundo. A CIA não irá parar de interferir na política interna de países vistos como incômodos ou rivais. E tudo indica que o futuro presidente não se sentirá acanhado em lançar novos ataques militares contra países longínquos, se as condições forem propícias.

15/04/2020

A queima do café e o COVID-19

Em 1931, o governo brasileiro comprou e queimou estoques de café. Essa medida para intervir nos preços do café teve pouco efeito na economia em geral - mas encheu os bolsos de alguns cafeicultores que corriam o risco de perderem a safra inteira. O governo, imprimindo dinheiro, comprou o produto que estava com baixa demanda e garantiu que alguns barões não quebrassem. Em geral nós olhamos para essa medida e achamos absurda, irracional, altamente intervencionista e parcial.

Queima do café em Santos. (Fonte: Revista Época)


Vamos avançar pra 2008. Muitas instituições financeiras dos EUA passaram anos produzindo Mortgage Backed Securities (MBS), que são produtos financeiros lastreados no financiamento das casas (hipotecas). Os bancos juntavam muitas hipotecas num contrato só e vendiam para fundos de pensão, fundos de investimento, etc. Esses clientes passavam a ter direito ao fluxo do pagamento das hipotecas e o banco as retirava de seu balanço. Com o mercado imobiliário muito aquecido, os bancos e financeiras estavam ficando cada vez mais criativos nos financiamentos que ofereciam, para gerar mais hipotecas, para vender mais MBS e embolsar as comissões. Um tipo de financiamento, por exemplo previa parcelas pequenas no início, que aumentavam após algum tempo. As pessoas não entendiam, achavam que conseguiriam pagar, ou achavam que iam vender a casa antes da parcela aumentar (por um valor maior do que compraram, já que o valor das casas só subia).

Após passado esse tempo, porém, muitas dessas pessoas não foram capazes de fazer o pagamento, gerando calotes. Os calotes foram se acumulando e as casas postas à venda, para cobrir o prejuízo. Eventualmente o mercado imobiliário desaqueceu, com os valores das casas caindo, mesmo das casas cujos donos ainda pagavam suas hipotecas. Porém, alguns donos de casas viram que sua dívida da hipoteca era maior que o próprio valor da casa - e também pararam de pagar. Esse efeito dominó começou a atingir as MBS, que também começaram a serem vendidas, gerando o mesmo efeito, só que agora dentro do mercado financeiro. Pouco a pouco, algumas instituições financeiras foram falindo. Depois, fundos dentro de grandes bancos. E finalmente, após um fim de semana tenso em setembro de 2008, o centenário banco Lehman Brothers faliu. O efeito dominó, porém, não havia terminado, e ameaçava derrubar outros gigantes e desencadear uma enorme crise.

O que o Banco Central dos EUA fez, então? Começou a comprar as MBS, ou seja, o "café", agora inútil, que os bancos passaram anos produzindo. Na prática, elas ainda estão "estocadas" dentro do balanço do BC dos EUA (segunda imagem). Os bancos, assim como os cafeicultores brasileiros nos anos 30, não quebraram. Isso foi visto como necessário e o presidente do BC, Ben Bernanke, foi considerado a "Pessoa do Ano" pela revista Time em 2009. A economia real, no entanto, foi duramente atingida e dezenas de milhões de pessoas perderam os empregos, apesar dos trilhões de dólares que o BC injetou nos bancos.


Quantidade de MBS no balanço do Federal Reserve. Apesar das promessas de que seria um programa "temporário", os ativos podres continuam lá. (Fonte: FRED)

Avançando mais dez anos, em setembro de 2019 uma mini-crise começou no mercado interbancário (repo market), e o BC novamente interveio. A crise diminuiu e o mercado parecia estar mais calmo quando, em meados de fevereiro, a crise do coronavírus atingiu o mundo todo. Armado dessa desculpa, o BC passou a intervir massivamente no mercado, fazendo seu balanço saltar de US$4 trilhões para US$6 trilhões. Desta vez, porém, estão comprando de tudo. Só falta comprar ações de empresas. Muitos estão comemorando, ou então criticando quem acha que isso é absurdo e irracional, afinal, como o mundo pode continuar sem um sistema financeiro? E novamente, como sempre, quem terá sua riqueza garantida com essas medidas serão os executivos de grandes empresas, os banqueiros e os políticos. Até quando será que vamos continuar achando que banqueiros são heróis?

22/02/2020

Por que Bernie Sanders pode ganhar?

Na disputa pela candidatura do Partido Democrata, um nome está se descolando do resto e aparecendo na liderança sozinho. Ele é Bernie Sanders, um senador de Vermont que se define como um socialista democrático. Na sua plataforma de governo, há diversas propostas para diminuir a desigualdade através de intervenção estatal. Entre elas, um imposto sobre "fortunas extremas" que começa em 1% para quem possui mais de US$32 milhões em bens e vai até 8% para quem tem mais de US$10 bilhões. O imposto não incide sobre a renda, mas sobre os bens, e o objetivo é "em 15 anos, cortar pela metade o patrimônio dos bilionários". Além disso, ele apoia o "New Deal Verde" (1), um plano para transformar a matriz energética dos EUA e chegar a 100% de energia renovável em 2030, ou seja, por meio de leis e regulação, vai atacar de frente a indústria de hidrocarbonetos.

Na parte social, ele quer expandir o Social Security para dar cobertura de saúde para todos os habitantes dos EUA e diminuir os preços dos remédios. Para habitação, propõe um investimento de US$2,5 trilhões para construir 10 milhões de casas populares. Na sua plataforma, também há um plano para cancelar US$1,6 trilhão em dívidas estudantis de 46 milhões de jovens. Em resumo, todo mundo ganharia algo "de graça" com Bernie presidente - menos os bilionários, donos de empresas da área de saúde, de petroleiras, etc.

As falas e os planos dos candidato batem de frente com séculos de cultura dos EUA e, talvez mais importante, com interesses poderosos. A influência das corporações na política é notável. Bilhões fluem delas para os congressistas, senadores, etc., através de lobistas e da "porta giratória" (2). Ao mesmo tempo, elas são as financiadoras da grande mídia e raramente um ponto de vista que as antagonize é transmitido aos cidadãos. Ou seja, há uma enorme vontade de acabar com a candidatura de Sanders.

Bernie Sanders num comício em Nevada. Foto: Washington Post.

O problema é que nesta edição de 2020, alguns fatores se alinharam para que ele despontasse em popularidade. Primeiro, a economia. A taxa de desemprego se encontra na mínima histórica, mas isso não significa que o mercado de trabalho esteja bom. Isso porque se você trabalhou por duas horas na última semana, com remuneração, você é considerado "empregado" nos EUA. Quem está desempregado e desistiu de procurar emprego não entra na conta do desemprego. Isso resulta num total de 95 milhões de estadunidenses acima de 16 anos fora do mercado de trabalho, além dos quase 6 milhões de desempregados oficialmente. Numa população total de 327 milhões, isso significa que cerca de um terço está em situação muito precária. E entre os 165 milhões de trabalhadores empregados, cerca de 148 milhões ganham pouco mais que dois salários mínimos, em média. Por isso, quando Bernie fala da injustiça do sistema dos EUA, que deixa a maior parte da população nessa situação enquanto faz a fortuna do 0.1% mais rico se multiplicar nos últimos anos, ele encontra muitos pares de ouvidos dispostos a escutar.

O segundo fator é o grande número de pessoas tentando a vaga de candidato(a) democrata. Isso faz com que não haja um rival forte contra Sanders, que terminou em primeiro lugar no voto popular nas duas primárias que já ocorreram. Joe Biden, ex-Vice Presidente de Barack Obama, era o favorito no início mas o resultado das duas primárias iniciais praticamente acabou com suas chances, tendo terminado em quarto lugar em Iowa e quinto em Nova Hampshire. A senadora Elizabeth Warren, endossada pelo New York Times, e considerada a rival mais direta de Sanders, terminou em em terceiro e quarto lugares. Pete Buttigieg, ex-prefeito de South Bend, Indiana, tem o apoio de parte do aparato Democrata que quer desesperadamente colocar um centrista na eleição para presidente, e acabou em segundo lugar nas duas, porém ficou com mais delegados que Sanders.

O terceiro fator é a força que ele tem contra seu possível adversário, Donald Trump. Um participante formidável em debates, Trump emplaca apelido atrás de apelido, mexe com a parte psicológica e assim enfraquece e desmoraliza seus rivais. Num exemplo emblemático das eleições de 2016, ele deixou Jeb Bush visivelmente alterado num debate (Jeb desistiu pouco depois). Muito antes de Warren lançar sua campanha, ele chamou atenção para o fato de que ela se autodeclarou "indígena" ao aplicar para uma vaga em Harvard, e lhe deu o apelido de "Pocahontas". Desafiada, a senadora fez um teste de DNA que mostrou que ela era apenas 0,005% indígena. O apelido pegou de vez e ela ficou com a fama de mentirosa.

Joe Biden, um dos candidatos mais velhos no certame, é propenso a se confundir e seu ritmo de fala não é dos mais enérgicos. Isso lhe deu o apelido de "Sleepy Joe" (Joe Dorminhoco). Depois, virou "Creepy/Sleepy Joe", (Joe Asqueroso/Dorminhoco), uma referência às diversas vezes que Joe foi gravado acariciando mulheres e crianças de maneira estranha. Michael Bloomberg, que recentemente se juntou a corrida, se tornou "Mini Mike", uma referência a sua baixa estatura - ele já se utilizou de um banquinho para parecer mais alto no púlpito. Sanders, por sua vez, só foi chamado de "Crazy Bernie" (Bernie Maluco) e "The Nutty Professor" (O Professor Aloprado), que comparado com os outros, são bem mais leves. Ou seja, parece que até para Trump o senador socialista tem menos pontos fracos que os outros. Ele mesmo admitiu, num áudio recentemente vazado, que seria mais difícil bater Hillary em 2016, se ela tivesse escolhido Bernie para ser seu parceiro como Vice-Presidente.

Além disso, já nas eleições de 2016 as pesquisas apontavam que Sanders ganharia com facilidade uma disputa direta com Trump, algo que os Democratas ignoraram completamente, jogando seu peso em Hillary Clinton, que tinha margens bem mais apertadas. As pesquisas, aliás, erraram muito nas eleições de 2016 - até a véspera, as chances de Clinton ganhar eram de 90%, de acordo com uma delas - e parecem estar errando novamente, já que Biden, que teve uma performance muito fraca, era considerado o favorito chegando em Iowa. Por outro lado, elas também apontam uma vitória de Bernie caso ele chegue até a corrida final.

O quarto e último fator é que o atual presidente não é muito popular. Ele assumiu com 45% de aprovação, foi caindo, e passou o primeiro ano da presidência abaixo de 40%. Barack Obama, por exemplo, logo que assumiu passou seis meses com aprovação acima de 60% e em oito anos de mandato nunca ficou abaixo de 40%. Trump só recentemente chegou perto de 50% de aprovação. Ou seja, por mais que ele seja o presidente em exercício, que sempre traz benefícios, sua eleição está longe de ser uma certeza.

Tudo isso faz com que o senador, além de ter chances muito reais de ganhar as primárias e ficar cara-a-cara com Donald Trump, também tenha um caminho para ganhar a presidência e se tornar o primeiro presidente socialista dos EUA. Essa ideia deve arrepiar os cabelos daqueles poderosos interesses descritos acima, que com certeza não estão assistindo tudo isso parados. Aparentemente, um dos planos agora é se unir sob a candidatura de Michael Bloomberg, ex-prefeito de Nova Iorque, na esperança de que ele ganhe algumas centenas de delegados e impossibilite uma vitória de Sanders na convenção do partido em julho. Sem um vitorioso lá, as regras mudam e a elite do partido tem muito mais liberdade para escolher seu candidato - e aí poderão colocam Bloomberg ou Buttigieg, mesmo que isso signifique perder as eleições para Trump. Pelo menos, os bilionários poderão dormir tranquilos.

(1) Uma referência ao New Deal de Franklin D. Roosevelt, um plano de obras públicas que ajudou a reerguer a economia estadunidense após a crise de 1929.

(2) A "porta giratória" ocorre quando um congressista sai do serviço público diretamente para um emprego numa corporação que se beneficiou de alguma decisão feita por ele durante seu mandato. Depois ele volta pro Congresso, e assim em diante.

14/02/2020

Bem-me-quer, mal-me-quer: O Partido Democrata e Bernie Sanders

Nas eleições para presidência dos EUA em 2016, este blog remou um pouco contra a corrente, pra variar, e lançou dois artigos desmistificando Hillary Clinton (aqui e aqui). Na época, ela e Bernie Sanders eram os concorrentes a vaga de candidato a presidência dos Estados Unidos pelo Partido Democrata. Apesar da grande fama, do nome forte, de uma administração democrata que deixou o desemprego nas mínimas históricas e da perspectiva de uma mulher ganhar a Casa Branca, em nenhum momento Hillary empolgou os eleitores. O problema era que enquanto a forma parecia perfeita, o conteúdo dela era um centrismo "sem sal". O eleitorado democrata parecia muito mais entusiasmado com a ideia de ter Bernie Sanders como candidato.

Enquanto Hillary recebia toneladas de dinheiro de lobistas, do mercado financeiro e das grandes corporações, Bernie discursava sobre as injustiças do sistema estadunidense e teve o maior número de doadores individuais da história. Sim, a economia parecia ir bem, dizia Sanders, mas nos últimos dez anos, o 1% mais rico ficou mais rico, a grande maioria ficou estagnada e os mais pobres ficaram mais pobres. Sim, o desemprego está baixíssimo, mas agora muitos tem mais de um emprego, milhões desistiram de procurar e os empregos ficaram cada vez mais precários. Ele levava multidões aos seus comícios; ela, nem tanto.

Bernie Sanders discursa em Nova Hampshire, antes de sua vitória, na terça-feira, 11 de fevereiro. Foto: Reuters

Do lado republicano, quase uma dúzia de pessoas disputavam as primárias para decidir quem seria o candidato. Donald Trump, até então um bilionário famoso em Nova Iorque, que nunca havia se candidatado a nada, resolveu tentar ser presidente. Com seu jeito direto de falar e uma presença de palco incomum, habilidade que desenvolveu ao longo de décadas estando na TV e tendo seu reality show, ele começou a atropelar seus adversários nos debates. Usando um misto de insultos aos adversários, falas apelativas e uma campanha de marketing sofisticada, ele foi ganhando uma primária atrás da outra, até que sua candidatura se tornou inevitável. Assim como Sanders, ele entusiasmava as plateias de seus discursos. As pesquisas mostravam que ele ganharia contra Hillary, mas perderia contra Sanders.

O Partido Democrata, no entanto, fez de tudo para barrar a candidatura do independente (1) socialista. Parte da campanha contra ele estava dentro das regras, pois como ele não era filiado ao partido, eles não eram obrigados a ajudá-lo. Outra parte envolveu muitas matérias plantadas na mídia e até uma âncora da CNN mandando as questões de um debate para uma pessoa ligada a Hillary. Tal campanha foi revelada por um vazamento dos e-mails do diretório nacional para o Wikileaks. Posteriormente, acusaram a inteligência russa de ter feito tal vazamento, que pegou muito mal para Hillary e que, segundo ela, foi responsável pela eleição de Trump. Na comoção que se seguiu, os Democratas no Congresso abriram uma investigação contra o presidente eleito para buscar seus possíveis laços com os russos, o que não deu em nada, apesar de desgastá-lo por quase dois anos.

Avançando para as eleições atuais, desta vez é o campo Democrata que tem uma dúzia de candidatos. Novamente, Sanders se lançou como candidato e passou a receber uma saraivada de ataques na imprensa. Além de diversos casos de distorção óbvia, nos quais as manchetes ou chamadas das matérias simplesmente omitiam o fato de que o senador de Vermont estava indo bem nas pesquisas ou até mudavam os dados, em todos os debates o viés anti-Bernie tem sido transparente. Os mediadores sempre guardavam as perguntas mais agressivas e incisivas para ele, enquanto simplesmente "levantavam a bola" para seus oponentes falarem de suas qualidades ou se juntarem ao coro nos ataques ao socialista. Quem também deu seu pitaco foi a própria Hillary Clinton, que disse, numa entrevista, que "ninguém gosta" do senador e se recusou a afirmar que o apoiaria caso ele fosse nomeado pelo seu partido. Isso apesar dele ter feito mais de 40 discursos em apoio a ela em 2016.

Nas duas primárias que já ocorreram, Iowa e Nova Hampshire, ele ganhou o voto popular, apesar de ficar com mais ou menos o mesmo número de delegados que um dos queridinhos do Partido, Pete Buttigieg, por causa da matemática maluca que rege essas eleições. Isso está deixando os lobistas e a própria grande mídia em pânico. Por conta desse processo de escolha gradual, vitórias no início asseguram a viabilidade do candidato e tendem a garantir mais votos para os ganhadores dessas primárias. O candidato precisa atingir o número de 1991 delegados até a convenção do partido, em julho, para garantir sua vaga. Agora é a fase inicial, e faltam duas votações - Nevada, no dia 22 de fevereiro, e Carolina do Sul, no dia 29. Daí, no dia 3 de março, a "Super Terça-Feira", nada menos que 1344 delegados estarão em disputa. Ou seja, o candidato ou candidata que chega bem nessa data pode praticamente decidir a nomeação.

Isso significa que o Partido Democrata tem pouco mais de duas semanas para conter uma onda de apoio a Sanders. Para isso, além de Buttigieg, outro candidato apareceu para embolar a disputa: o bilionário Michael Bloomberg, uma das pessoas mais ricas do mundo. Em pouco tempo, ele quebrou todos os recordes de gastos em sua campanha - e isso é a parte declarada. Logo após a entrada de Bloomberg, o Partido alterou algumas regras para que ele pudesse participar de um debate, por exemplo, mostrando que estão dispostos a ajudá-lo. Nem Buttigieg, nem Bloomberg, possuem a mesma base eleitoral que Sanders. Eles não tem a mesma projeção nacional que ele construiu ao longo de várias campanhas, nem seus discursos empolgam. Novamente, parece que os Democratas preferem não eleger ninguém - e, no caso, eleger Donald Trump - ao invés de eleger Bernie Sanders.

(1) Nos EUA as regras permitem que se lance uma candidatura independente para as primárias.

11/02/2020

Vem aí um novo "ataque químico" na Síria?

A guerra civil na Síria ainda não acabou. O conflito, de "civil", só tem o nome. A realidade é que os Estados Unidos da América e seus aliados no Oriente Médio canalizaram bilhões de dólares para organizações paramilitares numa operação de mudança de regime, disfarçada de intervenção pró-democracia. O objetivo não é, nem nunca foi, "libertar" o povo da Síria do ditador Bashar Al-Assad, e sim instalar um governo que esteja completamente alinhado com os interesses do bloco liderado pelos EUA. O país é apenas um dos alvos mais recentes do impulso dos EUA por hegemonia total ao redor do globo. Antes dele, eles invadiram o Afeganistão e o Iraque e instalaram centenas de bases lá, cercando o Irã, e também bombardearam a Líbia, resultando na queda de Muammar Gaddafi. Este último era um dos países mais ricos da África, e se transformou numa terra sem lei, com várias facções disputando o poder e travando uma guerra sangrenta.

O documento da DIA, disponível aqui. Se a versão com diversos cortes já revelou tanto, o que será que está atrás das partes censuradas?

No início da guerra na Síria, começou a ascensão do Estado Islâmico, até então uma pequena organização paramilitar iraquiana, que surgiu durante a ocupação dos EUA no país. Um documento da DIA (1) de agosto de 2012, avaliando a situação na Síria, já concluía que havia a possibilidade do estabelecimento de um califado sunita radical na região de fronteira entre a Síria e o Iraque. Segundo o documento, os "países do Golfo" (provavelmente se referindo a Qatar, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos) queriam isso, com o objetivo de isolar o regime sírio. Em junho de 2014, o califado do Estado Islâmico foi declarado e ao longo de cinco anos, o EI teve sua ascensão e queda, sem que Bashar Al Assad perdesse seu posto. A intervenção decisiva da Rússia, começando no final de 2015, virou o jogo e fez o domínio da organização terrorista minguar. Em dois anos, duas cidades chave para o EI, Aleppo e Deir ez-Zor, foram retomadas pelo governo sírio.

Então, em abril de 2018, com o exército sírio avançando e retomando território rebelde, um suposto "ataque químico" contra os rebeldes ocorreu na cidade de Douma, próxima a capital, Damasco. Imediatamente, fotos de crianças vítimas do ataque estamparam as capas dos principais jornais e a comunidade internacional condenou o governo de Assad, mesmo sem provas, como documentado aqui neste blog. Antes mesmo da chegada da missão da OPCW (2), o órgão responsável pela fiscalização do uso de armas químicas, os EUA lançaram um ataque com mísseis contra uma base síria. O Presidente Trump foi aplaudido pelos experts por seu pulso firme e até críticos do presidente saudaram o ataque como um ato especialmente digno do cargo. As derrotas dos terroristas ficaram em segundo plano e a ideia do "ditador monstruoso" foi renovada para a opinião pública.

O suposto ataque químico foi questionado pelo governo sírio e pelos russos, que exigiam provas. Muitos analistas, incluindo este blog, também expressaram seu ceticismo, já que esse ataque não fazia o menor sentido do ponto de vista estratégico e a organização envolvida na alegação, os Capacetes Brancos (White Helmets), tinham um histórico de envolvimento com os serviços clandestinos dos EUA e Reino Unido. No entanto, esse ponto de vista não foi discutido na grande mídia, que preferiu servir ao público exatamente a versão que a Casa Branca gostaria, como sempre. Assim que a investigação oficial da OPCW começou, houve um rumor de que ela estava contaminada, ou seja, que não seria uma investigação parcial. Um relatório confirmando a presença de uma arma química a base de cloro foi divulgado, e analistas independentes prontamente questionaram o documento, alegando que não havia nenhuma prova de que o agente químico veio de uma bomba disparada por um helicóptero, como se supunha. Além disso, nada indicava uma potência militar no cloro encontrado, ou seja, os vestígios encontrados poderiam ser de água sanitária, dessas que se encontra em qualquer residência.

As capas da grande mídia no dia do suposto ataque químico em Douma. Cenas do próximo capítulo?

Passado um ano e meio, aqueles rumores de uma investigação enviesada foram confirmados por um vazamento ao Wikileaks, que foi completamente ignorado pela grande mídia e de boa parte da mídia alternativa também. Um engenheiro que foi à Douma reclamou ao Wikileaks que seus achados foram completamente ignorados no relatório final. A organização juntou um painel, que incluiu o ex-presidente da OPCW, o brasileiro José Bustani, para ouvir as alegações e ler os documentos providenciados pelo engenheiro. A conclusão do painel foi de que a OPCW não obedeceu o próprio regulamento ao suprimir as opiniões dissidentes de engenheiros e investigadores, e pedia que as conclusões do relatório oficial fossem revistas. Posteriormente, mais documentos vieram à tona, incluindo um rascunho do relatório final que mostrava várias informações cruciais que foram retiradas ou omitidas na versão do relatório que foi divulgada.

Atualmente, os terroristas da Tahrir al-Sham, a "Al Qaeda da Síria", dominam a cidade de Idlib, próxima a fronteira com a Turquia. Este é um dos últimos bastiões dos rebeldes, que declararam a cidade a capital do "Governo de Salvação Sírio". O Exército Sírio está chegando perto e tomou a cidade de Saraqib nos últimos dias. A situação, portanto, é similar a que Douma se encontrava quando o suposto ataque químico ocorreu. A opinião pública não está acompanhando o avanço das forças governamentais, pois isso não interessa aos EUA. É nesse contexto que o Ministério da Defesa russo recebeu uma informação de que os rebeldes podem tentar fazer uma encenação de um ataque com armas químicas, para tentar forçar a mão dos EUA e seus aliados e fazê-los atacar as forças do governo sírio. Segundo as informações, a equipe que encenará o ataque está próxima a Idlib e inclui membros dos Capacetes Brancos.

Caso as informações estejam corretas, é de se esperar que nas próximas semanas fotos de crianças sofrendo por um suposto ataque químico estampem, simultaneamente, todos os jornais de renome internacional. Nesse dia, os jornais vão ignorar por completo o aviso recebido e divulgado pelo Ministério da Defesa russo; não haverá nenhuma discussão sobre a validade estratégica de Assad fazer um ataque desses neste momento; quase ninguém vai exigir uma investigação completa da OPCW antes de pedirem uma ação militar contra o "ditador monstruoso"; e o suposto ataque em Douma será mostrado como uma prova do que Assad é capaz, ignorando totalmente os vazamentos divulgados pelo Wikileaks, que põem toda a narrativa em questão.

Notas:

(1) - Defense Intelligence Agency, Agência de Inteligência de Defesa, o braço de inteligência das Forças Armadas dos EUA.
(2) - Organization for the Prohibition of Chemical Weapons, Organização pela Proibição de Armas Químicas, com sede em Haia, na Holanda.

07/02/2020

Os EUA não querem a paz

Os Estados Unidos da América são o único país onde sempre se debate a possibilidade de bombardear outro país, sem que haja uma guerra declarada entre ambos. Eles nunca foram bombardeados em seu território por forças inimigas em toda sua história, mas possuem o mais complexo e sofisticado aparelho militar do mundo, centenas de bases em territórios estrangeiros (1) e já bombardearam, só nos últimos dez anos, sete países diferentes (2). O Pentágono possui diversos comandos centrais que cobrem todo o globo, a Internet e agora até o espaço sideral (3). O Comando de Operações Especiais, por sua vez, atua em mais de 120 países em missões de treinamento e outras secretas, segundo estimativas. A National Security Agency (NSA - Agência de Segurança Nacional) possui o maior aparato de vigilância da história e uma instalação em Utah pretende ter espaço de armazenamento suficiente para gravar tudo que ela monitora, num permanente estado de guerra.

O Artigo 1º da Constituição dos EUA determina que apenas o Congresso pode declarar guerra. Esse documento, elaborado em meados do século 18, era uma resposta incisiva ao absolutismo e os constituintes entendiam que o poder de declarar guerra jamais poderia ficar nas mãos de uma só pessoa. Pelo contrário, deveria estar nas mãos do povo, por meio de seus representantes eleitos no Congresso, que deveriam debater abertamente as questões de guerra. A última vez que a Constituição foi respeitada, porém, foi na Segunda Guerra Mundial, quando o Presidente Franklin D. Roosevelt declarou guerra contra o Japão e em seguida contra o resto do Eixo - Alemanha e Itália - em 1941, e um ano depois contra outros países aliados ao Eixo (Hungria, Bulgária e Romênia). Nos quase 80 anos que se sucederam, todos as operações militares não foram acompanhadas dessa declaração de guerra aprovada pelo Congresso.

Selo das Forças Espaciais dos EUA, em sua tentativa de dominar até o Espaço Sideral.
Todas essas operações são autorizadas por um misto de ordens secretas, ordens aprovadas por um comitê de deputados muito estrito (chamado de "Gangue de Oito") ou ordens tão amplas que podem ser aplicadas a praticamente qualquer coisa. Durante a Guerra do Vietnã, por exemplo, a CIA e a Força Aérea dos EUA bombardearam o Laos e o Camboja secretamente, sob ordens presidenciais. Nem o Congresso nem o público foram avisados dessa campanha, que só veio a tona com um vazamento para um jornalista e com o escândalo Watergate e as subsequentes investigações do Congresso. A guerra com drones, por sua vez, se iniciou em 2001 mas só teve seus detalhes revelados em 2015, num vazamento para o The Intercept. Numa série de matérias, foi mostrado que havia um processo envolvendo os mais altos níveis da administração dos EUA, no qual oficiais decidiam quem devia morrer, literalmente. O programa continua a pleno vapor, já que os recentes assassinatos do general iraniano Qassem Soleimani e o vice-comandante das Forças de Mobilização Popular do Iraque, Abu Mahdi Al-Muhandis, foram fruto desse programa.

Além das campanhas de bombardeio, os EUA conduziram inúmeras guerras secretas por meio da CIA, que utiliza desde rádios piratas e redes sociais, passando pelo apoio a organizações políticas, think tanks e até financiamento de organizações paramilitares. Na guerra civil da Síria, a CIA canalizou um bilhão de dólares em 5 anos para financiar organizações rebeldes armadas. Duzentos milhões de dólares por ano não são nada perto dos orçamentos das guerras do Iraque e Afeganistão, que giram na casa dos trilhões, mas são uma quantidade enorme de dinheiro na Síria, cujo PIB estava em torno de 60 bilhões em 2010, antes da guerra começar. Mantendo as proporções, seria como se a CIA gastasse 7 bilhões de dólares, ou um quarto do orçamento total do Ministério da Defesa brasileiro, num exército paramilitar para invadir o Brasil. Parte das armas da CIA que chegaram ao Exército da Libertação da Síria (Free Syrian Army) acabaram indo parar nas mãos da Jabhat Al Nusra (associada a Al Qaeda) e do próprio Estado Islâmico.

As gigantes da indústria armamentista dos EUA, todas empresas públicas, listadas na Bolsa de Valores. Juntas, tem um valor de mercado equivalente ao das nove maiores empresas listadas na bolsa de valores brasileira (Petrobras, Itaú, Ambev, Vale, Bradesco, Santander, Banco do Brasil, Itaú SA e B3).
O orçamento total de operações de guerra abertas e clandestinas é praticamente incalculável. O Pentágono, com seu orçamento de mais de 700 bilhões de dólares este ano, falhou todas as auditorias de suas contas, e há inúmeras agências que possuem um orçamento secreto. Pra se ter uma ideia, até a década de 70, a própria existência da NSA era secreta e a existência do National Reconnaissance Office (NRO - Escritório de Mapeamento Nacional) não foi revelada ao público até a década de 90, apesar da agência ter sido formada quatro décadas antes. O território nacional dos EUA é coberto de bases militares, gerando uma enorme dependência política. As bases movimentam a economia local e trazem milhares de empregos, fazendo com que os deputados tenham que garantir o orçamento que as mantém abertas, para não desagradar sua base eleitoral. A indústria de armamentos mundial é dominada por empresas dos EUA, e seus contratos fazem parte da própria política externa do país. Em alguns momentos, o Departamento de Estado e seus embaixadores agem quase que como lobistas ou vendedores dessas empresas.

Por fim, a guerra e as Forças Armadas são tema de inúmeros filmes e séries de Hollywood. Alguns dos filmes com as maiores bilheterias dos últimos anos tiveram alguma influência dos militares. Em troca de deixarem os produtores utilizarem as bases, os aviões, tanques, submarinos e porta-aviões, eles fazem alguns "ajustes" nos roteiros, sempre no sentido de melhorar a imagem deles e retirar críticas ou qualquer cena que possa mostrar um militar fazendo algo ruim. Ou seja, além do domínio militar duro, da influência clandestina, da economia e da política interna e externa, a guerra faz parte da cultura e da identidade estadunidense, num processo de construção que ocorre há décadas. Portanto, quando ouvir algum oficial desse governo falar em "paz", desconfie.

Notas:

(1) - Alguns dos países que sediam bases ou tropas estadunidenses são: Alemanha, Japão, Itália, Romênia, Bulgária, Polônia, Arábia Saudita, Bahrein, Djibouti, Qatar, Nigéria, Camarões, as ilhas de Diego Garcia e Guam, Filipinas, Coréia do Sul e outros. Além disso, os EUA ocupam o Iraque, o Afeganistão e a Síria.
(2) - Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria, Somália (com drones), Paquistão (com drones) e Iêmen (com drones).
(3) - Os comandos militares regionais são seis: NORTHCOM, que cobre a América do Norte e Caribe, SOUTHCOM, que cobre a América Central e do Sul, AFRICOM, que cobre a África, EUCOM, que cobre a Europa, CENTCOM, que cobre o Oriente Médio e parte da Ásia e o INDOPACOM que cobre Ásia e Oceania. No ano passado, foi re-estabelecido o SPACECOM, para comandar operações no espaço sideral, e a Força Espacial foi fundada como um braço separado das Forças Armadas.

11/01/2020

O império ataca novamente

Em 3 de janeiro de 2020, o presidente dos EUA, Donald Trump, ordenou o assassinato do Major-General Qasem Soleimani, comandante das forças de elite do Irã e considerado a segunda pessoa mais poderosa do país, e do vice-Comandante da Força de Mobilização Popular do Iraque, Abu Mahdi al-Muhandis, além do motorista deles e um adido militar. Eles foram mortos por um míssil de alta precisão que os atingiu quando estavam se deslocando de carro dentro do Aeroporto Internacional de Bagdá, na capital do Iraque. Os EUA, como sempre fazem após um claríssimo ato de agressão, cinicamente alegaram autodefesa. Segundo eles, Soleimani atualmente planejava ataques à forças dos EUA na região, além de ter sido "responsável" pela morte de militares estadunidenses no Iraque nos anos de 2007-08 e de um segurança privado num ataque com foguetes no final de dezembro do ano passado. Os EUA ocupam dois vizinhos do Irã (Afeganistão e Iraque) há mais de 15 anos e a Síria há cerca de 5, e Soleimani ajudava a resistência armada contra os EUA dentro desses países. Em linha com a estratégia de contenção, as Forças Armadas dos EUA também possuem bases ou alianças militares em outros oito países, como se vê no mapa abaixo.

Os EUA estão em pé de guerra contra o Irã desde que o ditador sanguinário Mohammad Reza Shah foi deposto na Revolução Iraniana de 1979, que instaurou o modelo de governo atual, liderado pelos aiatolás. Em 1980, quando o Iraque de Saddam Hussein atacou o Irã e tomou a região do rio Xatalárabe, os EUA prontamente se alinharam com o Iraque, e mesmo após o uso de armas químicas pelo Iraque, não se afastou dessa aliança. Nessa longa guerra de oito anos, morreram centenas de milhares de iranianos e iraquianos e foi nela que Qasem Soleimani começou a subir postos na hierarquia do exército iraniano.

Mais recentemente, após uma breve trégua no final do governo Obama, com o Acordo Nuclear, os EUA voltaram a impor inúmeras sanções econômicas contra os iranianos. As sanções são uma forma de guerra que atinge muito mais a população civil que o governo ou as forças militares do país que é alvo delas. No Iraque, estima-se que as sanções impostas na década de 90 mataram 500 mil crianças de doenças preveníveis e de desnutrição, já que sob elas, o país não podia importar comida, vacinas e remédios essenciais. Na Venezuela, um estudo recente estimou que 40 mil pessoas morreram por conta das sanções, que impediram a importação de remédios e equipamentos médicos. E no Irã, as novas sanções do governo Trump fizeram o desemprego e a inflação dispararem, além de causar uma recessão. O Fundo Monetário Internacional espera que o país, que cresceu 12% em 2016, deva sofrer uma contração de 6% em 2019.

Os comandantes militares mortos, Qasem Souleimani (à esq.) e Abu Mahdi al-Muhandis (à dir.). Ambos são considerados heróis em regiões da Síria e do Iraque por terem derrotado o Estado Islâmico. (Imagens: Wikimedia Commons).
 
No final do ano passado, já com o país sofrendo sob os efeitos econômicos das sanções, milhares de manifestantes tomaram as ruas do Irã, atacando prédios da administração pública e até exigindo a queda do regime dos aiatolás. Os EUA, obviamente, celebraram as manifestações e demostraram todo seu apoio pela mudança de regime. Porém, o movimento foi perdendo força e não chegou a ser uma ameaça real ao governo iraniano. Alguns chegaram a dizer que o assassinato de Soleimani também enfraqueceria o governo, mas o exato oposto aconteceu. Mais de um milhão de pessoas foram ao velório do Major-General, num claríssimo apoio a linha de atuação dele - ou seja, de combate aos EUA. Como é de praxe nessas situações, muitas bandeiras estadunidenses foram queimadas e se ouviram os cantos de "morte aos EUA".

Então, ficam as perguntas: será que esse ato de "autodefesa" deixou o mundo mais seguro? Ou será que esse assassinato é mais um motivo para milhares de iranianos, iraquianos e outros cidadãos do Oriente Médio se radicalizarem contra esse agressor que vem há décadas ocupando, bombardeando e desestabilizando a região? Será que o objetivo dos EUA é a paz, ou será que é deixar a região em chamas, instável e em eterno estado de guerra, para justificar sua própria presença militar lá?

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Para saber mais:

Sobre o golpe de 1953 que instaurou a ditadura sanguinária de Moahammad Reza Shah, apoiado pelos EUA: "Golpe de Estado x Revolução Popular".

Sobre a política de mudança de regime: "Mudanças de Regime 'do Bem'".
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