28/10/2020

Joe Biden ou Donald Trump? Ou será que tanto faz?

A eleição para a presidência dos EUA em 2020 está se juntando ao rol de acontecimentos num mundo em convulsão. O próprio país passa por violentos protestos de cunho racial, algo que não era visto há décadas. A polícia, historicamente racista e sob muitos aspectos ainda assim, passou a ser questionada. A pandemia do coronavírus continua avançando, contaminando cerca de 300 mil pessoas por dia ao redor do mundo. A própria realidade da pandemia é questionada constantemente e o debate sobre o vírus se misturou com as ideologias políticas de cada um. As redes sociais se alimentam da polarização e isolamento da população, manipulando nossas emoções através de algoritmos para nos prender na frente das telas, restritos a "bolhas" sociais, enquanto suas companhias ficam cada vez mais ricas no mercado financeiro. Nesse contexto, a eleição para o 46º Presidente dos EUA está acontecendo.

Como este blog notou, Bernie Sanders tinha chances reais de ganhar as primárias do Partido Democrata, apresentando uma "terceira via" entre o establishment representado por Biden, Hillary e afins, e o "anti-político" Trump. É uma terceira via curiosa, que junta elementos socialistas de distribuição de renda com o welfare state e uma política externa anti-imperialista. Ela funcionou em 2016, gerando muito entusiasmo, mas infelizmente não o suficiente para impedir que o DNC (Comitê Democrático Nacional, a autoridade máxima do Partido Democrata) favorecesse Hillary Clinton, que ganhou a nomeação. 

Desde a minha última visita a este assunto, antes da pandemia, obviamente muita coisa aconteceu, mas há dois fatos que ajudam a entender porque Bernie perdeu a nomeação e Biden a ganhou. O primeiro foi a entrada de Michael Bloomberg na corrida. O anúncio havia sido feito em novembro de 2019, e no final de fevereiro de 2020 ele ultrapassou a marca de US$500 milhões gastos em propaganda, de olho na "Super Terça". Para se ter uma ideia, no final das contas Bloomberg gastou cerca de um bilhão de dólares, sendo 99% desse dinheiro dele próprio. A campanha de Sanders gastou US$200 milhões no total, um quinto do que Bloomberg gastou, sendo que 80% desse dinheiro veio de uma multidão de um milhão e meio de doadores individuais. Parte da estratégia do magnata foi atacar incessantemente Bernie Sanders, então o líder no número de delegados. É a opinião deste autor que o principal objetivo dessa dinheirama era justamente diminuir as chances de Sanders ganhar, já que desde o início Bloomberg sabia que não tinha chances de ganhar a nomeação.

Donald Trump e Joe Biden se enfrentam ao vivo. (Foto: Google Imagens).

O segundo evento foi a súbita saída de alguns candidatos à nomeação, após uma vitória de Biden na "Super Terça" (quando ganhou 680 delegados contra 554 de Sanders). Simultaneamente a suas respectivas saídas, unanimemente deram seu apoio a Joe Biden. Eventualmente, o próprio Sanders cedeu e também endossou Biden, para a surpresa de alguns. Então Joe Biden, o ex-Vice Presidente de Barack Obama, se tornou o candidato do Partido Democrata à Presidência. O próprio Obama relutou em apoiá-lo, somente o fazendo em abril deste ano, diga-se de passagem. 

Mas na prática, no que esses dois supostos pólos da política estadunidense se diferenciam? Certamente não na importantíssima política externa dos EUA. O atual presidente aparentemente tentou cumprir sua promessa de campanha de retirar tropas do Iraque, do Afeganistão e da Síria. No Iraque, até mesmo o governo local exigiu a saída das tropas estadunidenses, numa votação polêmica com um partido inteiro se abstendo. Trump acabou com um programa de um bilhão de dólares da CIA para armar "rebeldes moderados" na Síria, mas manteve uma base dentro do país, à revelia do governo local, e assegurou que uma empresa estadunidense pudesse começar a explorar o petróleo numa área disputada no norte da Síria. Ele também avançou em negociações com o Talibã no Afeganistão, mas foi fortemente questionado por isso. Uma história sobre supostas recompensas que os russos estavam pagando aos talibãs, cuja fonte eram "oficiais de inteligência anônimos", dominou parte do noticiário na mesma época das negociações, levantando suspeitas de que algum grupo de dentro da burocracia militar e de inteligência queria obstruir o processo. De quebra, essa história ajudou a bloquear a sua tentativa de retirar tropas da Alemanha, que os EUA ocupa desde o final da II Guerra Mundial. 

Por outro lado, no início do ano Trump ordenou o assassinato do General Qasseim Souleimani, um herói de guerra iraniano e um dos pilares do governo. De quebra, matou também um importante comandante iraquiano. Na Síria, em abril de 2018, utilizou um pretexto falso de supostos ataques com armas químicas por parte do governo de Bashar al-Assad para destruir com mísseis um dos mais avançados centros de pesquisa científica do país, num ataque conjunto com a França e o Reino Unido. Além disso, apoiou a tentativa de golpe na Venezuela em 2019, empoderando um "líder de oposição" incompetente, Juan Guaidó, que não tem qualquer influência relevante dentro da política e dos militares venezuelanos. Também apoiou o golpe de estado contra Evo Morales na Bolívia, que pôs a racista Jeanine Añez na presidência e desencadeou uma fortíssima repressão aos movimentos sociais e indígenas do país. Este também foi um golpe mal calculado, já que na recente eleição o candidato apoiado por Morales ganhou com quase o dobro de votos que o segundo colocado (Añez sequer foi candidata, no final). Trump fez campanha dizendo que iria sair das guerras intermináveis dos EUA, e diminuir a presença dos militares ao redor do mundo. Na prática, mudou muito pouco o curso da política externa unilateral do país e entrou em aventuras geopolíticas de qualidade duvidosa.

Biden, por sua vez, era vice-presidente quando Obama decidiu bombardear a Líbia sob o pretexto de que o ditador líbio Muammar Gaddafi havia "distribuído Viagra" para promover estupros em massa, uma alegação ventilada pela enviada dos EUA à ONU e ecoada pelo presidente do Tribunal Criminal Internacional, porém jamais provada. Anteriormente, quando senador, apoiou as guerras do Iraque e do Afeganistão e nunca se arrependeu disso, apesar de ter tentado reescrever a história, dizendo que não apoiou a invasão do Iraque. Na realidade, já em 1998, dizia que o único caminho para desarmar o  Iraque era unilateralmente atacando o país e "removendo Saddam". Durante o governo Trump, apoiou entusiasticamente o golpe na Venezuela e se calou sobre a Bolívia. Se for eleito, ele trará uma equipe de relações exteriores composta de ex-membros da administração Obama e de conselheiros de Hillary Clinton, com uma visão que não quebrará o paradigma dos EUA como líder do mundo.

Em momento algum o candidato democrata se alinhou com a ideia de diminuir o alcance das forças armadas dos EUA, ou de buscar uma política externa multilateral, cooperativa. Pelo contrário, sua campanha quer re-estabelecer uma política externa que coloque os EUA em "primeiro lugar", revertendo o suposto isolacionismo de Trump, que na prática, como vimos aqui, nem é tão isolacionista assim. Biden também endossa a ideia de que a China e a Rússia são inimigas dos EUA, reduzindo as possibilidades de que a tensão entre essa potências nucleares diminua. Como a maior parte dos políticos do seu país, ele acredita que a Rússia mudou o curso das eleições de 2016, uma teoria da conspiração baseada em evidências dúbias

Bases militares dos EUA no exterior. (Fonte: Base Nation).

Portanto, se você faz parte dos 99,99% da população mundial que não se beneficia diretamente das aventuras imperialistas dos EUA, suas perspectivas para esta eleição são desanimadoras. Independentemente de quem ganhar, a postura de "policial mundial" do nosso vizinho do norte não irá mudar. Além disso, a possibilidade de outros golpes de estado contra governos que não se dobram aos interesses deles continuará viva. O Pentágono não irá fechar suas centenas de bases ao redor do mundo. A CIA não irá parar de interferir na política interna de países vistos como incômodos ou rivais. E tudo indica que o futuro presidente não se sentirá acanhado em lançar novos ataques militares contra países longínquos, se as condições forem propícias.

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