23/07/2017

John Pilger - Por dentro do Governo Invisível, parte um

(Traduzido do artigo Inside the invisible government: War, Propaganda, Clinton and Trump, postado no site rt.com em 28 de outubro de 2016. Os destaques são meus.)


O jornalista americano Edward Bernays é frequentemente descrito como o homem que inventou a propaganda moderna. Sobrinho de Sigmund Freud, o pioneiro da psicanálise, foi Bernays quem criou o termo “relações públicas” como um eufemismo para a parcialidade e suas mentiras.


Em 1929, como marqueteiro para a indústria do cigarro, Bernays convenceu feministas a promover cigarros para mulheres fumando na Parada de Páscoa de Nova Iorque – comportamento então considerado escandaloso. Uma feminista, Ruth Booth, declarou, “Mulheres! Acendam outra tocha de liberdade! Lutem contra outro tabu de gênero!”.

A influência de Bernays se estendeu muito além dos comerciais. Seu maior sucesso foi seu papel em convencer o público estadunidense a entrar na carnificina da Primeira Guerra Mundial. O segredo, ele disse, era “construir o consentimento” das pessoas para “os controlar e regimentar de acordo com nossa vontade sem que eles saibam disso”.

Ele descreveu isso como o “verdadeiro poder na nossa sociedade” e o chamou de um “governo invisível”.

Hoje, o governo invisível nunca foi mais forte e menos compreendido. Em minha carreira como jornalista e cineasta, eu nunca vi a propaganda se insinuar em nossas vidas como faz agora sem ser desafiada.


A História de Duas Cidades

Imagine duas cidades. Ambas estão sob ataque de forças governamentais daquele país. Ambas as cidades estão ocupadas por fanáticos, que cometem atrocidades terríveis, como decapitações. Mas há uma diferença vital. Em um ataque, os soldados do governo são descritos como liberadores pelos repórteres ocidentais acompanhando-os, que entusiasticamente relatam suas batalhas e ataques aéreos. Há fotos na primeira página desses soldados heroicos fazendo o gesto do V de vitória. Há poucas menções de vítimas civis.

Na segunda cidade – em outro país próximo – quase a mesma coisa está acontecendo. Forças do governo estão atacando uma cidade controlada pelo mesmo tipo de fanáticos.

A diferença é que esses fanáticos são apoiados, financiados e armados por “nós” - pelos Estados Unidos e Grã-Bretanha. Eles tem até um centro de mídia que é financiado pela Grã-Bretanha e os EUA.

Outra diferença é que os soldados do governo atacando essa cidade são os “caras maus”, condenados por atacar e bombardear a cidade – exatamente a mesma coisa que os bons soldados da primeira cidade estão fazendo.

Confuso? Na verdade, não. Esses são os dois pesos, duas medidas que são a essência da propaganda. Eu estou me referindo, é claro, ao ataque da cidade de Mosul pelas forças governamentais do Iraque, que são apoiados pelos EUA e a Grã-Bretanha, e ao ataque a Aleppo pelas forças governamentais da Síria, apoiadas pela Rússia. Um é bom; o outro é ruim.

Por Trás dos Fanáticos

O que é pouco relatado é que ambas as cidades não seriam ocupadas por fanáticos e destruídas pela guerra se a Grã-Bretanha e os Estados Unidos não tivessem invadido o Iraque em 2003. Essa empreitada criminosa foi lançada baseada em mentiras muito similares a propaganda que agora distorce nossa compreensão da guerra civil na Síria.

Sem os tambores da propaganda disfarçados de notícia, os monstruosos ISIS e Al Qaeda e a Frente Al-Nusra e o resto da gangue jihadista talvez não existisse, e a população da Síria talvez não estivesse lutando por sua vida hoje.

Alguns talvez se lembrem em 2003 uma sucessão de repórteres da BBC virando para a câmera e nos contando que o Primeiro-Ministro britânico Tony Blair foi “absolvido” pelo que se tornou o crime do século, a invasão do Iraque. As redes de televisão dos EUA produziram a mesma validação para George W. Bush. A Fox News trouxe o ex-Secretário de Estado Henry Kissinger para tagarelar sobre as mentiras do então Secretário de Estado Colin Powell.

No mesmo ano, logo após a invasão, eu filmei uma entrevista em Washington com Charles Lewis, o renomado jornalista investigativo estadunidense. Eu perguntei a ele, “O que teria acontecido se a mídia mais livre do mundo tivesse desafiado seriamente o que se provou ser propaganda grosseira?”

Ele respondeu que se os jornalistas tivessem feito seu trabalho, “haveria uma chance muito, muito boa de que não entrássemos em guerra no Iraque.”

Foi uma declaração chocante, apoiada por outros jornalistas famosos para quem eu fiz a mesma pergunta – Dan Rather da CBS, David Rose do The Observer, e jornalistas e produtores da BBC, que desejavam ficar anônimos.

Em outras palavras, se os jornalistas tivessem feito seu trabalho, se tivessem desafiado e investigado a propaganda em vez de a amplificar, centenas de milhares de homens, mulheres e crianças estariam vivas hoje, e não haveria ISIS ou ataque a Aleppo ou Mosul.

Não haveria a atrocidade no metrô de Londres em 7 de julho de 2005. não haveria a fuga de milhões de refugiados; não haveria acampamentos miseráveis.

Quando a atrocidade terrorista aconteceu em Paris em novembro, o Presidente François Hollande imediatamente enviou aviões para bombardear a Síria – e mais terrorismo se seguiu, previsivelmente, o produto do discurso de Hollande se gabando da França estar “em guerra” e “não demonstrando piedade”. Que a violência de estado e a violência jihadista se alimentam uma da outra é a verdade que nenhum líder nacional tem a coragem de dizer.

“Quando a verdade é substituída por silêncio,” disse o dissidente soviético Yevtushenko, “o silêncio é uma mentira”.

Punindo a Independência

O ataque ao Iraque, o ataque a Líbia e o ataque a Síria aconteceram porque os líderes de cada um desses países não eram marionetes do ocidente. O histórico de direitos humanos de um Saddam ou Qaddafi é irrelevante. Eles não obedeceram ordens e abriram mão do controle dos seus países.

O mesmo destino aguardava Slobodan Milosevic quando ele se recusou a assinar um “acordo” que demandava a ocupação da Sérvia e sua conversão para uma economia de mercado. Seu povo foi bombardeado, e ele foi processado na Corte Penal Internacional. Independência desse tipo é intolerável.

Como o Wikileaks revelou, foi só quando o líder sírio Bashar al-Assad rejeitou em 2009 um oleoduto que atravessaria seu país vindo do Qatar com destino a Europa, que ele foi atacado. A partir daquele momento, a CIA planejava destruir o governo da Síria com fanáticos jihadistas – os mesmos fanáticos atualmente fazendo de reféns as populações de Mosul e do leste de Aleppo.

Por que isso não é notícia? O ex-oficial do escritório de Relações Exteriores da Grã-Bretanha que era responsável pelas sanções contra o Iraque, me contou: “nós alimentávamos os jornalistas com informaçõezinhas seletas, ou não falávamos com eles. É assim que funcionava”.

O cliente medieval do ocidente, a Arábia Saudita – para a qual os EUA e a Grã-Bretanha vendem bilhões de dólares em equipamento militar – está atualmente destruindo o Iêmen, um país tão pobre que em “bons tempos”, metade das crianças sofre de desnutrição.

Olhe no YouTube e você verá que tipo de bombas massivas – “nossas” bombas – os sauditas utilizam contra vilas miseráveis, contra casamentos e funerais. As explosões parecem pequenas bombas atômicas. Os soldados sauditas que auxiliam na escolha dos alvos trabalham lado a lado com oficiais britânicos. Esse fato não está no jornal das 8.


Mensageiros Refinados

A propaganda é mais eficiente quando nosso consentimento é construído por aqueles com uma educação fina – Oxford, Cambridge, Harvard, Columbia – e com carreiras na BBC, no The Guardian, no New York Times, no Washington Post.

Essas organizações são conhecidas como “mídia liberal”. Eles se apresentam como as tribunas iluminadas e progressivas do zeitgeist moral. Eles são anti-racistas, pró-feministas e pró-LGBT. E eles amam guerra. Enquanto se manifestam pelo feminismo, apoiam guerras predatórias que negam os direitos de incontáveis mulheres, incluindo o direito a vida.

Em 2011, a Líbia, então um estado moderno, foi destruída sob o pretexto de que Muammar al-Gaddafi iria cometer genocídio sobre sua própria população. Essa era a notícia, incessantemente; e não havia provas. Era uma mentira.

De fato, a Grã-Bretanha, a Europa e os Estados Unidos queriam o que gostam de chamar de “mudança de regime” na Líbia, o maior produtor de petróleo da África. A influência de Gaddafi no continente e, acima de tudo, sua independência eram intoleráveis.

Então Gaddafi foi assassinado com uma faca no traseiro por fanáticos, apoiados pelos EUA, Grã-Bretanha e França. Hillary Clinton comemorou sua morte horrível na frente das câmeras, declarando, “Nós viemos, nós vimos, ele morreu!”

A destruição da Líbia foi um triunfo da mídia. Enquanto os tambores da guerra eram batidos, Jonathan Freedland escreveu no The Guardian: “Apesar dos riscos muito reais, o caso pela intervenção continua forte”.

Intervenção – que palavra educada, benigna, “guardiã”, cujo real significado, para a Líbia, era morte e destruição.

De acordo com seus próprios registros, a OTAN lançou 9.700 bombardeios contra a Líbia, mais de um terço contra alvos civis. Os ataques incluíram mísseis com pontas de urânio. Olhe as fotografias dos escombros em Misrata e Sirte, e as valas comuns identificadas pela Cruz Vermelha. O relatório da Unicef sobre as crianças mortas diz, “a maioria deles tinha menos de dez anos”.

Como consequência direta, Sirte se tornou uma capital do ISIS.

(Continua na parte dois).

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