21/03/2015

The Central Intelligence Agency - Parte 2 - "Plausible Deniability"

Olá, leitor.

Este post é sobre o conceito de plausible deniability. Como descrevi no post anterior sobre a CIA, todas as suas operações são autorizadas pelo National Security Council, que reúne os líderes do governo dos EUA. Porém, muitas operações passaram a ser clandestinas* e, na realidade, criminosas. Então, como isolar os líderes de possíveis processos judiciais?

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A ideia é simples: construir camadas de defesa. Antes de começar, vale dizer que não estou supondo nenhuma dessas técnicas. Este texto é baseado nas exposições de casos concretos nos livros de Victor Marchetti (ex-analista da CIA), David Wise, e L. Fletcher Prouty, e nos testemunhos de dois ex-agentes da CIA, John Stockwell e Philip Agee (este com um livro publicado no Brasil em 1976, chamado Dentro da Companhia - Diário da CIA), entre outras entrevistas e documentários.

As camadas de defesa

A "cover story". A cover story é literalmente uma "história de cobertura" que explicaria porque uma pessoa qualquer estaria fazendo uma ação qualquer. É utilizada em toda operação clandestina, mas ela aparece publicamente quando uma operação dá errado.
Por exemplo, aqui no Brasil, durante a ditadura, a polícia encontra um indivíduo com explosivos num depósito. Este indivíduo está agindo sob ordens da CIA, mas a polícia não sabe disso. Como fazer para esse caso não chegar nas mãos da CIA? Bem, esse indivíduo teria decorado uma história que diria que ele era membro de uma guerrilha de esquerda qualquer. Caso essa história não desse certo, ele poderia dizer que era de outra. Se isso também falhasse, ele diria que era um louco. Uma cover story mais elaborada envolveria uma organização criada pela CIA, um front, uma proprietary organization com todas as marcas de uma organização de verdade, que seria usada nessa situação como cobertura.
Notem que a cover story é basicamente dirigida à polícia e à mídia. Se a polícia comprar a primeira história, a mídia vai dar a manchete da guerrilha de esquerda, e acabou-se o assunto. Mesmo que a polícia descubra algo mais pra frente, se não virar manchete, a história "deu certo". Além disso, a CIA pode ter influência direta sobre um jornal ou outro, facilitando sua vida nesses casos. Nos EUA, a infiltração da CIA nos jornais ficou conhecida como Operation Mockingbird.

Os cut-outs, os intermediários. Seguindo no exemplo. O indivíduo que foi pego estava agindo sob ordens da CIA. Ou seja, haveria um agente, enviado dos EUA, dentro do Brasil, sob algum disfarce. Esse agente nunca entraria em contato direto com o indivíduo cuidando dos explosivos no depósito. Ele se utilizaria de um intermediário. Assim, esse indivíduo não saberia o nome, nem a fisionomia, nem nada desse agente, o que o isolaria do incidente. Caso alguém fosse nomeado, seria o intermediário. Na Operation Ajax (derrubada de Mossadegh no Irã em 1953 - meu post sobre isso aqui), o agente Kermit Roosevelt usou intermediários para se comunicar com os militares que ajudaram a executar o golpe. Os intermediários tem outra vantagem. Por não serem exatamente contratados pela CIA, a CIA pode alegar que não tem nada a ver com eles, também. Isso foi um dos fatores que blindou a CIA durante o escândalo Irã-Contra.

Os fronts. Os fronts são organizações criadas pela CIA, ou financiadas pela CIA. Podem ser empresas, associações ou até partidos. Normalmente são bem financiadas, profissionais, e não são totalmente "de fachada": exercem funções, tem algum propósito. Assim, atraem membros "legítimos". A CIA, por sua vez, mistura entre seus membros agentes. Esses agentes então tem uma cobertura. Isso é particularmente útil se um agente precisa, por exemplo, de um visto legítimo. É só esse front fornecer os documentos dizendo que o indivíduo vai trabalhar lá, que a maioria dos países vai fornecer um visto.
O livro A CIA e o Culto da Inteligência tem um capítulo inteiro dedicado à esse assunto. No linguajar da CIA, os fronts são proprietary organizations (organizações proprietárias). Uma das mais conhecidas é a Air America, que ajudou nas operações da CIA durante a guerra no Vietnã. Air America é também o nome de um filme, estrelando Mel Gibson e Robert Downey Jr., tratando exatamente sobre o assunto.

Finalmente, há a compartimentalização e o need to know. Esses talvez sejam os mecanismos de fundo, que estão presentes em todas as camadas de defesa e fazem parte de todas as operações secretas. Aqui não estou mais falando necessariamente de operações clandestinas, ou seja, possivelmente ilegais. Mesmo dentro daquelas operações legítimas de inteligência, esses dois mecanismos existem.
A compartimentalização quer dizer o seguinte: nenhum indivíduo saberá tudo sobre uma operação qualquer. As diferentes partes da operação, os aspectos da operação, os pequenos sub-projetos e necessidades de cada operação são feitos por indivíduos diferentes, que podem ou não comunicar-se entre si. Podem até não saber exatamente para que estão fazendo x ou y.
Voltando ao exemplo dos explosivos. Além daquele indivíduo que iria operar o atentado à bomba, haveria outros escolhendo o melhor alvo. Haveria outros, por exemplo, responsáveis por veicular na mídia artigos acusando uma guerrilha de esquerda de fazer o atentado. Haveria outros, responsáveis por pressionar o Congresso e por exigir leis mais duras para condenar os criminosos que cometeram tal crime bárbaro. E cada um desses poderia não saber da existência do outro. Porém, todos teriam ordens e estariam simplesmente aguardando o desencadeamento dos eventos.
A compartimentalização está relacionada com o need to know. O need to know é literalmente "precisar saber". Quer dizer o seguinte: você só vai saber o que você precisa saber. Ou seja, não adianta perguntar sobre outros assuntos, sobre outras operações; o seu superior determina o que você precisa saber. O indivíduo responsável pela pressão ao Congresso pode indagar, por exemplo, se o atentado foi feito pela CIA. E seu superior pode dizer que não, ou que não vai comentar no assunto. A ideia é criar confusão e incerteza, e assim insular os indivíduos envolvidos. O autor L. Fletcher Prouty dedica muito tempo à discutir esses dois pontos, sempre que foi indagado sobre como a CIA mantém seus segredos.

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Juntando tudo isso, qual o resultado?

Suponha que o National Security Council, em reunião, discuta um país que recentemente mudou de governo, e que esse governo é antagonista aos EUA. Os seus membros não vão dizer, abertamente: "matem o líder!". Mas podem dizer algo do tipo: "seria positivo para a segurança nacional dos EUA, que na próxima eleição esse governo não ganhe. Autorizamos a CIA a tomar quaisquer medidas que considere cabíveis para atingir esse objetivo". Com essa autorização em mãos, o diretor da CIA passa a articular seus agentes para atingir o objetivo. Esses agentes, por sua vez, tem autonomia e podem determinar que um atentado à bomba, ou um escândalo de corrupção, ou uma manifestação popular, ou apoio à um partido de oposição, ou todas as anteriores, seriam as melhores soluções. Meses depois, o NSC recebe os relatos de que um evento aconteceu naquele país, que enfraqueceu o governo. Foi a CIA? Para o NSC, não importa, e é melhor que eles não saibam.

Não temos acesso aos documentos que demonstrariam exatamente o encadeamento de autoridades e ordens que vão do NSC até o agente "na rua" - pois não precisamos saber. Ou melhor, não temos acesso à todos os documentos. Mas como estou tentando demonstrar aqui, há farto material para pesquisa, e é possível estabelecer bases sólidas para estudo sem entrar em "teorias da conspiração".

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*: A expansão das funções da CIA sob a seção 102(d)(5) do National Security Act (das "outras funções") se deu principalmente na direção de Allen Dulles (período de 1953-1961). Não vou me estender muito sobre essa figura, mas por enquanto vale dizer que ele era um advogado numa prestigiosa firma de advocacia, a Sullivan & Cromwell.

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