Surpreendendo muitas pessoas, incluindo este blog, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, ordenou uma ofensiva militar contra a Ucrânia, sob o pretexto de se defender de ameaças ucranianas e para "des-nazificar" o país. Numa guerra, o lado mais fraco é sempre o dos civis dos países envolvidos, que na maioria das vezes sequer apoiam o início dos conflitos - por isso, prestamos toda a solidariedade aos ucranianos, aos russos, bielo-russos e outros tantos que serão afetados pela destruição, pelas mortes e pelas migrações forçadas resultantes da guerra. A guerra entre duas ou mais nações é fruto de disputas pelo poder que o cidadão comum raramente se envolve, e muitas vezes sequer compreende. Esta guerra, em particular, está causando um grande impacto e chamando a atenção do mundo inteiro, um aspecto muito interessante para este autor, que acompanha conflitos ao redor do mundo há uma década. Este texto não pretende entrar em detalhes sobre o conflito em si, mas dar um passo para trás e olhar para outros aspectos.
A ação russa é terrível. A guerra, apesar de acompanhar toda a existência do ser humano, tomou proporções muito mais destruidoras com o surgimento de armas mais poderosas, como os mísseis e bombas, chegando até o horror absoluto da bomba nuclear. O século XX, com as duas guerras mundiais, mostrou o potencial devastador do uso desses armamentos. Atualmente, portanto, qualquer guerra pode evoluir para uma situação realmente trágica, e quando o líder de um país decide ordenar um ataque, as consequências são claras. Especialmente após a II Guerra Mundial, com os julgamentos dos crimes de guerra nazistas em Nuremberg - onde a própria decisão de atacar um país foi considerada o crime supremo - e do surgimento da ONU - cujo propósito, declarado em seu primeiro artigo, é "manter a paz internacional" - a guerra passou a ser, pelo menos em teoria, algo absolutamente condenável.
Na prática, porém, as leis e tratados internacionais tem uma capacidade limitada de restringir as ações dos países, e menos de dez anos depois da assinatura do Tratado da ONU, por exemplo, uma grande guerra ocorreu na Coreia, dividindo o país, causando muitas mortes e consequências que são sentidas até hoje. A ONU, inclusive, legitimou que uma coalizão de países - composta principalmente por forças dos EUA - entrasse na guerra do lado sul-coreano, já que, segundo a ONU, os norte-coreanos foram os agressores, ao ultrapassarem o paralelo 38. Outra ação militar agressiva com efeitos que duram até hoje, também legitimada pela ONU, foi a criação do estado de Israel em 1947, que resultou na guerra da Palestina em 1948 e num conflito praticamente constante desde então, com fases agudas como a Guerra de Gaza em 2014, com quase 3 mil mortos nessa ocasião. Nas décadas seguintes, no contexto da Guerra Fria, houve uma série de conflitos armados, guerras civis e golpes militares, sendo os maiores a Guerra do Vietnã, que os EUA participaram de maneira bastante unilateral (sem o apoio de uma resolução da ONU), e a Guerra do Afeganistão, na qual a URSS invadiu o país e os EUA financiaram extremistas islâmicos para combatê-la.
Com o fim da Guerra Fria, surgiu a ideia dos "dividendos da paz", ou seja, a noção de que os países diminuiriam seus orçamentos militares com o fim das hostilidades entre EUA e União Soviética, trazendo a possibilidade de mais investimentos em outras áreas como educação, saúde e defesa dos direitos humanos. Os EUA, porém, tinham outros planos, e na década de 90 invadiram o Panamá, atacaram o Iraque e conduziram operações de guerra na Somália, por exemplo. A ONU declarou que a operação no Panamá foi uma violação de seus artigos, mas autorizou a guerra no Iraque. A Guerra na Iugoslávia, que incluiu conflitos na Croácia, na Bósnia, na Eslovênia, no Kosovo e na Sérvia, também ocorreu na esteira do fim da Guerra Fria, entre 1991 e 1995, e foi o último grande conflito militar na Europa, antes da atual guerra na Ucrânia. Nela, a OTAN bombardeou diversas cidades, liderada pelos EUA e com uma posição ambígua da ONU.
Os ataques de 11 de setembro de 2001 resultaram numa enorme onda de militarização e de intervenções por parte dos EUA, principalmente no Oriente Médio. O evento ativou o artigo 5 do tratado da OTAN, ou seja, todos os seus países membros foram convocados a reagir ao ataque e se unir contra o inimigo. O inimigo, inicialmente o Talibã no Afeganistão, acabou tendo sua definição muito ampliada, tanto é que a mesma autorização de George W. Bush de 14 de setembro de 2001 foi renovada de ano em ano, para justificar todas as guerras dos EUA desde então, incluindo a do Iraque, da Líbia e da Síria, que não tiveram absolutamente nada a ver com a al Qaeda e os ataques de 2001. É possível até argumentar que a invasão do Afeganistão poderia ter sido evitada, caso os EUA tivessem aceitado a oferta do governo talibã de entregar Osama bin Laden, e tratado o ataque como um crime e não um ato de guerra. A ideia de que a guerra seria uma operação rápida foi desmascarada pelo fato de que as Forças Armadas dos EUA construíram enormes bases militares no país, que foram essenciais para a guerra seguinte, no Iraque.
No livro The Price of Loyalty, o premiado jornalista Ron Suskind descreve como o Secretário do Tesouro de Bush, Paul O'Neill, participou de uma discussão sobre uma possível guerra no Iraque na primeira reunião do Conselho de Segurança Nacional (órgão máximo da Casa Branca para assuntos estratégicos, militares e clandestinos), em janeiro de 2001, ou seja, muito antes dos ataques terroristas. Uma famosa nota descrevendo uma fala do Secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, escrita apenas algumas horas depois dos ataques, mostra seu desejo de reagir atacando Saddam Hussein "ao mesmo tempo". Todos os pretextos para a guerra do Iraque - a inexistente relação com a Al Qaeda, a suposta busca de uma bomba nuclear por parte de Saddam Hussein, os supostos planos de utilizar "armas de destruição em massa" - se provaram falsos. Não houve apoio da ONU. Os EUA escolheram fazer guerra, e fizeram, agindo de maneira unilateral. Vale dizer que se utilizaram de sua estrutura militar na Europa (principalmente suas bases na Alemanha) para fazer a logística da guerra.
A nota do auxiliar Stephen Cambone, resumindo as ordens de Rumsfeld em 11 de setembro de 2001. No centro, é possível ler "Hit S.H. @ same time. Not only UBL" ("Acertar Saddam Hussein ao mesmo tempo. Não só Osama bin Laden"). Fonte: Mother Jones. |
A guerra no Iraque se estende até hoje, a do Afeganistão durou mais de vinte anos, e esses conflitos envolveram também ataques com drones no Paquistão, por exemplo. A próxima grande operação foi na Líbia em 2010, já sob o governo do ganhador do prêmio Nobel da Paz, Barack Obama. Nela, o país mais rico da África ficou destruído e até hoje não há um governo estável por lá. O pretexto oficial era que o ditador Muammar al Gaddafi estaria promovendo estupros em massa e um genocídio, fatos que, como os pretextos do caso iraquiano, também nunca foram provados. Em 2011, começou o conflito na Síria, onde protestos populares se misturaram ataques de grupos armados organizados que tentaram tomar o poder à força, com financiamento de diversas monarquias islâmicas da região e total apoio dos EUA. Eventualmente, após o surgimento do Estado Islâmico, os EUA entraram de vez no conflito, e até hoje estão ocupando ilegalmente certas regiões do país, incluindo a província de Homs, rica em petróleo. Em 2015, a Rússia interveio militarmente à pedido do governo sírio, que conseguiu derrotar a maioria dos grupos rebeldes, incluindo o EI. Nesse meio tempo, em 2014, a Arábia Saudita atacou o Iêmen, após um grupo alinhado com o Irã tomar o poder no país. Essa guerra dura até hoje, e a situação no Iêmen é absolutamente devastadora. Outro ataque importante, que parece de um passado longínquo, mas que ocorreu há apenas dois anos, foi o assassinato do Major-General das forças de elite do Irã, Qasem Soleimani, por meio de um míssil lançado de um drone, ordenado pelo então Presidente dos EUA, Donald Trump, um ato de guerra que felizmente não teve maiores consequências.
A tensão na Ucrânia, por sua vez, se iniciou há muito tempo, principalmente por causa do avanço da OTAN em direção a fronteira russa. A fase mais aguda, por sua vez, começou com o golpe de estado de 2014, que trouxe um governo declaradamente hostil à Rússia, que por sua vez reagiu anexando a Crimeia, onde há a importante base naval de Sevastópol, que dá acesso ao mar Negro. O conflito no leste da Ucrânia está acontecendo desde então, mas agora os russos trouxeram seu envolvimento militar para outro patamar, avançando para dentro das fronteiras do seu vizinho após grandes manobras de equipamento e tropas. Como já disse, este texto não pretendeu entrar em detalhes sobre o conflito em si, mas uma boa análise, do excelente Aaron Maté, pode ser encontrada aqui.
O objetivo deste panorama foi mostrar que, mesmo após a criação da ONU e dos horrores das Guerras Mundiais, a guerra nunca deixou de fazer parte do cenário internacional, e, principalmente, que nunca há consenso sobre a legitimidade de cada um dos conflitos. O mundo não é dominado por instituições que mantêm a paz, nem por potências que não fazem guerra. A intervenção da Rússia na Ucrânia, portanto, não ocorre num vácuo. Uma grande diferença, agora, é que o agressor é um país cuja imagem é de "vilão", e não de "herói", o que explica parte da forte reação da opinião pública e da mídia, que vem acompanhando o conflito diariamente. Subitamente, portanto, a lei internacional foi redescoberta, por causa de sua "violação" por parte dos russos. Mas até que ponto ela realmente existia?