10/03/2022

Que lei internacional? - Um contexto da guerra na Ucrânia

Surpreendendo muitas pessoas, incluindo este blog, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, ordenou uma ofensiva militar contra a Ucrânia, sob o pretexto de se defender de ameaças ucranianas e para "des-nazificar" o país. Numa guerra, o lado mais fraco é sempre o dos civis dos países envolvidos, que na maioria das vezes sequer apoiam o início dos conflitos - por isso, prestamos toda a solidariedade aos ucranianos, aos russos, bielo-russos e outros tantos que serão afetados pela destruição, pelas mortes e pelas migrações forçadas resultantes da guerra. A guerra entre duas ou mais nações é fruto de disputas pelo poder que o cidadão comum raramente se envolve, e muitas vezes sequer compreende. Esta guerra, em particular, está causando um grande impacto e chamando a atenção do mundo inteiro, um aspecto muito interessante para este autor, que acompanha conflitos ao redor do mundo há uma década. Este texto não pretende entrar em detalhes sobre o conflito em si, mas dar um passo para trás e olhar para outros aspectos.

A ação russa é terrível. A guerra, apesar de acompanhar toda a existência do ser humano, tomou proporções muito mais destruidoras com o surgimento de armas mais poderosas, como os mísseis e bombas, chegando até o horror absoluto da bomba nuclear. O século XX, com as duas guerras mundiais, mostrou o potencial devastador do uso desses armamentos. Atualmente, portanto, qualquer guerra pode evoluir para uma situação realmente trágica, e quando o líder de um país decide ordenar um ataque, as consequências são claras. Especialmente após a II Guerra Mundial, com os julgamentos dos crimes de guerra nazistas em Nuremberg - onde a própria decisão de atacar um país foi considerada o crime supremo - e do surgimento da ONU - cujo propósito, declarado em seu primeiro artigo, é "manter a paz internacional" - a guerra passou a ser, pelo menos em teoria, algo absolutamente condenável.

Na prática, porém, as leis e tratados internacionais tem uma capacidade limitada de restringir as ações dos países, e menos de dez anos depois da assinatura do Tratado da ONU, por exemplo, uma grande guerra ocorreu na Coreia, dividindo o país, causando muitas mortes e consequências que são sentidas até hoje. A ONU, inclusive, legitimou que uma coalizão de países - composta principalmente por forças dos EUA - entrasse na guerra do lado sul-coreano, já que, segundo a ONU, os norte-coreanos foram os agressores, ao ultrapassarem o paralelo 38. Outra ação militar agressiva com efeitos que duram até hoje, também legitimada pela ONU, foi a criação do estado de Israel em 1947, que resultou na guerra da Palestina em 1948 e num conflito praticamente constante desde então, com fases agudas como a Guerra de Gaza em 2014, com quase 3 mil mortos nessa ocasião. Nas décadas seguintes, no contexto da Guerra Fria, houve uma série de conflitos armados, guerras civis e golpes militares, sendo os maiores a Guerra do Vietnã, que os EUA participaram de maneira bastante unilateral (sem o apoio de uma resolução da ONU), e a Guerra do Afeganistão, na qual a URSS invadiu o país e os EUA financiaram extremistas islâmicos para combatê-la. 

Com o fim da Guerra Fria, surgiu a ideia dos "dividendos da paz", ou seja, a noção de que os países diminuiriam seus orçamentos militares com o fim das hostilidades entre EUA e União Soviética, trazendo a possibilidade de mais investimentos em outras áreas como educação, saúde e defesa dos direitos humanos. Os EUA, porém, tinham outros planos, e na década de 90 invadiram o Panamá, atacaram o Iraque e conduziram operações de guerra na Somália, por exemplo. A ONU declarou que a operação no Panamá foi uma violação de seus artigos, mas autorizou a guerra no Iraque. A Guerra na Iugoslávia, que incluiu conflitos na Croácia, na Bósnia, na Eslovênia, no Kosovo e na Sérvia, também ocorreu na esteira do fim da Guerra Fria, entre 1991 e 1995, e foi o último grande conflito militar na Europa, antes da atual guerra na Ucrânia. Nela, a OTAN bombardeou diversas cidades, liderada pelos EUA e com uma posição ambígua da ONU.

Os ataques de 11 de setembro de 2001 resultaram numa enorme onda de militarização e de intervenções por parte dos EUA, principalmente no Oriente Médio. O evento ativou o artigo 5 do tratado da OTAN, ou seja, todos os seus países membros foram convocados a reagir ao ataque e se unir contra o inimigo. O inimigo, inicialmente o Talibã no Afeganistão, acabou tendo sua definição muito ampliada, tanto é que a mesma autorização de George W. Bush de 14 de setembro de 2001 foi renovada de ano em ano, para justificar todas as guerras dos EUA desde então, incluindo a do Iraque, da Líbia e da Síria, que não tiveram absolutamente nada a ver com a al Qaeda e os ataques de 2001. É possível até argumentar que a invasão do Afeganistão poderia ter sido evitada, caso os EUA tivessem aceitado a oferta do governo talibã de entregar Osama bin Laden, e tratado o ataque como um crime e não um ato de guerra. A ideia de que a guerra seria uma operação rápida foi desmascarada pelo fato de que as Forças Armadas dos EUA construíram enormes bases militares no país, que foram essenciais para a guerra seguinte, no Iraque.

No livro The Price of Loyalty, o premiado jornalista Ron Suskind descreve como o Secretário do Tesouro de Bush, Paul O'Neill, participou de uma discussão sobre uma possível guerra no Iraque na primeira reunião do Conselho de Segurança Nacional (órgão máximo da Casa Branca para assuntos estratégicos, militares e clandestinos), em janeiro de 2001, ou seja, muito antes dos ataques terroristas. Uma famosa nota descrevendo uma fala do Secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, escrita apenas algumas horas depois dos ataques, mostra seu desejo de reagir atacando Saddam Hussein "ao mesmo tempo". Todos os pretextos para a guerra do Iraque - a inexistente relação com a Al Qaeda, a suposta busca de uma bomba nuclear por parte de Saddam Hussein, os supostos planos de utilizar "armas de destruição em massa" - se provaram falsos. Não houve apoio da ONU. Os EUA escolheram fazer guerra, e fizeram, agindo de maneira unilateral. Vale dizer que se utilizaram de sua estrutura militar na Europa (principalmente suas bases na Alemanha) para fazer a logística da guerra. 

A nota do auxiliar Stephen Cambone, resumindo as ordens de Rumsfeld em 11 de setembro de 2001. No centro, é possível ler "Hit S.H. @ same time. Not only UBL" ("Acertar Saddam Hussein ao mesmo tempo. Não só Osama bin Laden"). Fonte: Mother Jones.

A guerra no Iraque se estende até hoje, a do Afeganistão durou mais de vinte anos, e esses conflitos envolveram também ataques com drones no Paquistão, por exemplo. A próxima grande operação foi na Líbia em 2010, já sob o governo do ganhador do prêmio Nobel da Paz, Barack Obama. Nela, o país mais rico da África ficou destruído e até hoje não há um governo estável por lá. O pretexto oficial era que o ditador Muammar al Gaddafi estaria promovendo estupros em massa e um genocídio, fatos que, como os pretextos do caso iraquiano, também nunca foram provados. Em 2011, começou o conflito na Síria, onde protestos populares se misturaram ataques de grupos armados organizados que tentaram tomar o poder à força, com financiamento de diversas monarquias islâmicas da região e total apoio dos EUA. Eventualmente, após o surgimento do Estado Islâmico, os EUA entraram de vez no conflito, e até hoje estão ocupando ilegalmente certas regiões do país, incluindo a província de Homs, rica em petróleo. Em 2015, a Rússia interveio militarmente à pedido do governo sírio, que conseguiu derrotar a maioria dos grupos rebeldes, incluindo o EI. Nesse meio tempo, em 2014, a Arábia Saudita atacou o Iêmen, após um grupo alinhado com o Irã tomar o poder no país. Essa guerra dura até hoje, e a situação no Iêmen é absolutamente devastadora. Outro ataque importante, que parece de um passado longínquo, mas que ocorreu há apenas dois anos, foi o assassinato do Major-General das forças de elite do Irã, Qasem Soleimani, por meio de um míssil lançado de um drone, ordenado pelo então Presidente dos EUA, Donald Trump, um ato de guerra que felizmente não teve maiores consequências. 

A tensão na Ucrânia, por sua vez, se iniciou há muito tempo, principalmente por causa do avanço da OTAN em direção a fronteira russa. A fase mais aguda, por sua vez, começou com o golpe de estado de 2014, que trouxe um governo declaradamente hostil à Rússia, que por sua vez reagiu anexando a Crimeia, onde há a importante base naval de Sevastópol, que dá acesso ao mar Negro. O conflito no leste da Ucrânia está acontecendo desde então, mas agora os russos trouxeram seu envolvimento militar para outro patamar, avançando para dentro das fronteiras do seu vizinho após grandes manobras de equipamento e tropas. Como já disse, este texto não pretendeu entrar em detalhes sobre o conflito em si, mas uma boa análise, do excelente Aaron Maté, pode ser encontrada aqui.

O objetivo deste panorama foi mostrar que, mesmo após a criação da ONU e dos horrores das Guerras Mundiais, a guerra nunca deixou de fazer parte do cenário internacional, e, principalmente, que nunca há consenso sobre a legitimidade de cada um dos conflitos. O mundo não é dominado por instituições que mantêm a paz, nem por potências que não fazem guerra. A intervenção da Rússia na Ucrânia, portanto, não ocorre num vácuo. Uma grande diferença, agora, é que o agressor é um país cuja imagem é de "vilão", e não de "herói", o que explica parte da forte reação da opinião pública e da mídia, que vem acompanhando o conflito diariamente. Subitamente, portanto, a lei internacional foi redescoberta, por causa de sua "violação" por parte dos russos. Mas até que ponto ela realmente existia?

15/02/2022

Quem quer fazer guerra na Ucrânia?

O mundo iniciou o ano de 2022 ouvindo o pesado som dos tambores da guerra. Segundo o governo dos EUA, a Rússia quer invadir a Ucrânia "a qualquer momento". Em resposta a essa suposta ameaça, a Casa Branca intensificou o envio de armas para os ucranianos, governados desde 2014 por políticos alinhados com os estadunidenses. A retórica agressiva domina sua grande mídia: segundo um estudo do MintPressNews, houve uma avalanche de artigos favoráveis a algum tipo de intervenção militar dos EUA em defesa dos ucranianos, contra uma minoria de opiniões de pessoas querendo uma solução diplomática e pacífica. Curiosamente, tanto os ucranianos quanto os russos não param de repetir que não querem entrar em guerra, explicitamente pedindo que os EUA parem com essa perigosa retórica.

A crise começou com a notícia de que tropas russas estavam se movimentando nas fronteiras da Ucrânia, supostamente acumulando forças para invadir o seu vizinho. Os russos alegam que a movimentação faz parte de exercícios militares ordinários, enquanto a grande mídia ocidental diz que essas manobras estão aumentando a tensão. Mas essa narrativa parece reservada apenas para os russos. Os EUA conduzem manobras militares enormes regularmente, e em fronteiras tensas, como a "European Defender", reunindo dezenas de milhares de tropas na Europa e a controversa "Foal Eagle" na Coréia do Sul, fruto de discórdia com os norte-coreanos e que foi cancelada após a cúpula entre o então Presidente Donald Trump e o ditador Kim Jong-Un em 2018 (outras manobras, menores, continuam). Raramente essas manobras são noticiadas na grande mídia. Normalmente, aparecem apenas em veículos especializados em notícias militares, mas como uma simples rotina, sem considerar os efeitos nos vizinhos, considerados inimigos dos EUA.

Outra razão alegada pelos EUA é de que o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, teria intenções expansionistas e autoritárias sobre a Europa. Entrar no conflito do lado dos ucranianos, portanto, seria defender a própria democracia. No entanto, enquanto fazem acalorados discursos para vilipendiar o governo da Rússia (e da China, do Irã, da Nicarágua etc.), os EUA dão apoio militar a mais de setenta por cento das ditaduras do mundo, num levantamento de 2015. Eles também não parecem se preocupar com as centenas de bilhões de dólares em vendas de equipamento militar avançado para a Arábia Saudita, uma monarquia brutal que reprime completamente qualquer oposição, e que decapitou cento e oitenta pessoas em 2019. 

Qual a explicação para a súbita atenção midiática e política sobre os ucranianos? Afinal, os EUA têm a capacidade de intervir militarmente em qualquer lugar do mundo. Por que os jornalistas e especialistas não estão advogando que a superpotência faça algo para acabar com a guerra do Iêmen, considerada pela ONU como o maior desastre humanitário, atualmente? Os estadunidenses e os britânicos estão ajudando os agressores da Arábia Saudita com armas e apoio diplomático. Uma simples mudança de postura poderia ser suficiente para inibir os sauditas. Ou então, a grande mídia poderia se perguntar por que os EUA defendem Israel de maneira intransigente, mesmo com ampla evidência de violações dos direitos humanos dos palestinos? E o que dizer da ocupação ilegal das forças armadas dos EUA no território sírio, mais precisamente na província de Homs, com o objetivo explícito de confiscar o petróleo e atingir as finanças do regime de Bashar al-Assad?

Um revelador estudo do Instituto Quincy Adams parece dar a resposta. A atenção é, muito provavelmente, resultado de um enorme lobby em favor do governo da Ucrânia, que, em 2021, fez mais de dez mil contatos com deputados, senadores, jornalistas e especialistas estadunidenses. Como nota o autor do estudo, em comparação, o influente lobby saudita fez "apenas" cerca de 2.300 contatos. O foco desse esforço é tentar impedir a construção de um oleoduto entre a Rússia e a Alemanha, que contornaria a Ucrânia, privando os ucranianos de bilhões em impostos sobre o trânsito do petróleo russo para a Europa. Para isso, o Senador Ted Cruz e outros aliados propuseram uma lei que sancionaria pesadamente o governo russo, que não passou pelo Congresso - mas outra lei, com ainda mais sanções, já está tramitando no lugar dessa.

Uma das muitas capas de revista retratando Putin como um político maligno. Fonte: Medium.

Apenas o lobby, é claro, não é capaz de explicar toda a crise. Há uma convergência de interesses dos ucranianos com setores importantes da burocracia estatal dos EUA que querem conter o crescimento da influência russa, a todo custo - inclusive argumentando a favor de uma guerra entre as potências nucleares. A grande mídia, que nunca considera legítimas as preocupações dos russos em relação à expansão da OTAN e do estabelecimento de bases militares dos EUA em seu entorno, não traz vozes dissidentes e simplesmente repete as falas dos lobistas. A longa campanha para pintar o Presidente Putin como a encarnação do mal, o diabo em pessoa ou o novo Hitler, cria um clima favorável à narrativa dos EUA como representantes do "bem". De quebra, os CEOs das maiores fornecedoras de equipamento militar comemoram, de forma mais ou menos velada, o aumento das tensões. As quatro maiores estão com as ações em alta neste ano.

O objetivo deste texto não é desdenhar da possibilidade da guerra, mas mostrar que não é apenas a Rússia que está se movendo - os EUA estão influenciando diretamente a situação. Apesar dos belos discursos contra o autoritarismo, a favor da liberdade e da democracia, ou da defesa dos direitos humanos dos ucranianos, o que a máquina estatal, diplomática e militar estadunidense quer é domínio e hegemonia. Eles não suportam a ideia de serem desafiados por potências emergentes. Eles querem ter a capacidade de pressionar e conter todo e qualquer possível adversário - só assim conseguem manter sua posição como a nação "indispensável", o país mais poderoso do mundo. 

28/10/2020

Joe Biden ou Donald Trump? Ou será que tanto faz?

A eleição para a presidência dos EUA em 2020 está se juntando ao rol de acontecimentos num mundo em convulsão. O próprio país passa por violentos protestos de cunho racial, algo que não era visto há décadas. A polícia, historicamente racista e sob muitos aspectos ainda assim, passou a ser questionada. A pandemia do coronavírus continua avançando, contaminando cerca de 300 mil pessoas por dia ao redor do mundo. A própria realidade da pandemia é questionada constantemente e o debate sobre o vírus se misturou com as ideologias políticas de cada um. As redes sociais se alimentam da polarização e isolamento da população, manipulando nossas emoções através de algoritmos para nos prender na frente das telas, restritos a "bolhas" sociais, enquanto suas companhias ficam cada vez mais ricas no mercado financeiro. Nesse contexto, a eleição para o 46º Presidente dos EUA está acontecendo.

Como este blog notou, Bernie Sanders tinha chances reais de ganhar as primárias do Partido Democrata, apresentando uma "terceira via" entre o establishment representado por Biden, Hillary e afins, e o "anti-político" Trump. É uma terceira via curiosa, que junta elementos socialistas de distribuição de renda com o welfare state e uma política externa anti-imperialista. Ela funcionou em 2016, gerando muito entusiasmo, mas infelizmente não o suficiente para impedir que o DNC (Comitê Democrático Nacional, a autoridade máxima do Partido Democrata) favorecesse Hillary Clinton, que ganhou a nomeação. 

Desde a minha última visita a este assunto, antes da pandemia, obviamente muita coisa aconteceu, mas há dois fatos que ajudam a entender porque Bernie perdeu a nomeação e Biden a ganhou. O primeiro foi a entrada de Michael Bloomberg na corrida. O anúncio havia sido feito em novembro de 2019, e no final de fevereiro de 2020 ele ultrapassou a marca de US$500 milhões gastos em propaganda, de olho na "Super Terça". Para se ter uma ideia, no final das contas Bloomberg gastou cerca de um bilhão de dólares, sendo 99% desse dinheiro dele próprio. A campanha de Sanders gastou US$200 milhões no total, um quinto do que Bloomberg gastou, sendo que 80% desse dinheiro veio de uma multidão de um milhão e meio de doadores individuais. Parte da estratégia do magnata foi atacar incessantemente Bernie Sanders, então o líder no número de delegados. É a opinião deste autor que o principal objetivo dessa dinheirama era justamente diminuir as chances de Sanders ganhar, já que desde o início Bloomberg sabia que não tinha chances de ganhar a nomeação.

Donald Trump e Joe Biden se enfrentam ao vivo. (Foto: Google Imagens).

O segundo evento foi a súbita saída de alguns candidatos à nomeação, após uma vitória de Biden na "Super Terça" (quando ganhou 680 delegados contra 554 de Sanders). Simultaneamente a suas respectivas saídas, unanimemente deram seu apoio a Joe Biden. Eventualmente, o próprio Sanders cedeu e também endossou Biden, para a surpresa de alguns. Então Joe Biden, o ex-Vice Presidente de Barack Obama, se tornou o candidato do Partido Democrata à Presidência. O próprio Obama relutou em apoiá-lo, somente o fazendo em abril deste ano, diga-se de passagem. 

Mas na prática, no que esses dois supostos pólos da política estadunidense se diferenciam? Certamente não na importantíssima política externa dos EUA. O atual presidente aparentemente tentou cumprir sua promessa de campanha de retirar tropas do Iraque, do Afeganistão e da Síria. No Iraque, até mesmo o governo local exigiu a saída das tropas estadunidenses, numa votação polêmica com um partido inteiro se abstendo. Trump acabou com um programa de um bilhão de dólares da CIA para armar "rebeldes moderados" na Síria, mas manteve uma base dentro do país, à revelia do governo local, e assegurou que uma empresa estadunidense pudesse começar a explorar o petróleo numa área disputada no norte da Síria. Ele também avançou em negociações com o Talibã no Afeganistão, mas foi fortemente questionado por isso. Uma história sobre supostas recompensas que os russos estavam pagando aos talibãs, cuja fonte eram "oficiais de inteligência anônimos", dominou parte do noticiário na mesma época das negociações, levantando suspeitas de que algum grupo de dentro da burocracia militar e de inteligência queria obstruir o processo. De quebra, essa história ajudou a bloquear a sua tentativa de retirar tropas da Alemanha, que os EUA ocupa desde o final da II Guerra Mundial. 

Por outro lado, no início do ano Trump ordenou o assassinato do General Qasseim Souleimani, um herói de guerra iraniano e um dos pilares do governo. De quebra, matou também um importante comandante iraquiano. Na Síria, em abril de 2018, utilizou um pretexto falso de supostos ataques com armas químicas por parte do governo de Bashar al-Assad para destruir com mísseis um dos mais avançados centros de pesquisa científica do país, num ataque conjunto com a França e o Reino Unido. Além disso, apoiou a tentativa de golpe na Venezuela em 2019, empoderando um "líder de oposição" incompetente, Juan Guaidó, que não tem qualquer influência relevante dentro da política e dos militares venezuelanos. Também apoiou o golpe de estado contra Evo Morales na Bolívia, que pôs a racista Jeanine Añez na presidência e desencadeou uma fortíssima repressão aos movimentos sociais e indígenas do país. Este também foi um golpe mal calculado, já que na recente eleição o candidato apoiado por Morales ganhou com quase o dobro de votos que o segundo colocado (Añez sequer foi candidata, no final). Trump fez campanha dizendo que iria sair das guerras intermináveis dos EUA, e diminuir a presença dos militares ao redor do mundo. Na prática, mudou muito pouco o curso da política externa unilateral do país e entrou em aventuras geopolíticas de qualidade duvidosa.

Biden, por sua vez, era vice-presidente quando Obama decidiu bombardear a Líbia sob o pretexto de que o ditador líbio Muammar Gaddafi havia "distribuído Viagra" para promover estupros em massa, uma alegação ventilada pela enviada dos EUA à ONU e ecoada pelo presidente do Tribunal Criminal Internacional, porém jamais provada. Anteriormente, quando senador, apoiou as guerras do Iraque e do Afeganistão e nunca se arrependeu disso, apesar de ter tentado reescrever a história, dizendo que não apoiou a invasão do Iraque. Na realidade, já em 1998, dizia que o único caminho para desarmar o  Iraque era unilateralmente atacando o país e "removendo Saddam". Durante o governo Trump, apoiou entusiasticamente o golpe na Venezuela e se calou sobre a Bolívia. Se for eleito, ele trará uma equipe de relações exteriores composta de ex-membros da administração Obama e de conselheiros de Hillary Clinton, com uma visão que não quebrará o paradigma dos EUA como líder do mundo.

Em momento algum o candidato democrata se alinhou com a ideia de diminuir o alcance das forças armadas dos EUA, ou de buscar uma política externa multilateral, cooperativa. Pelo contrário, sua campanha quer re-estabelecer uma política externa que coloque os EUA em "primeiro lugar", revertendo o suposto isolacionismo de Trump, que na prática, como vimos aqui, nem é tão isolacionista assim. Biden também endossa a ideia de que a China e a Rússia são inimigas dos EUA, reduzindo as possibilidades de que a tensão entre essa potências nucleares diminua. Como a maior parte dos políticos do seu país, ele acredita que a Rússia mudou o curso das eleições de 2016, uma teoria da conspiração baseada em evidências dúbias

Bases militares dos EUA no exterior. (Fonte: Base Nation).

Portanto, se você faz parte dos 99,99% da população mundial que não se beneficia diretamente das aventuras imperialistas dos EUA, suas perspectivas para esta eleição são desanimadoras. Independentemente de quem ganhar, a postura de "policial mundial" do nosso vizinho do norte não irá mudar. Além disso, a possibilidade de outros golpes de estado contra governos que não se dobram aos interesses deles continuará viva. O Pentágono não irá fechar suas centenas de bases ao redor do mundo. A CIA não irá parar de interferir na política interna de países vistos como incômodos ou rivais. E tudo indica que o futuro presidente não se sentirá acanhado em lançar novos ataques militares contra países longínquos, se as condições forem propícias.

15/04/2020

A queima do café e o COVID-19

Em 1931, o governo brasileiro comprou e queimou estoques de café. Essa medida para intervir nos preços do café teve pouco efeito na economia em geral - mas encheu os bolsos de alguns cafeicultores que corriam o risco de perderem a safra inteira. O governo, imprimindo dinheiro, comprou o produto que estava com baixa demanda e garantiu que alguns barões não quebrassem. Em geral nós olhamos para essa medida e achamos absurda, irracional, altamente intervencionista e parcial.

Queima do café em Santos. (Fonte: Revista Época)


Vamos avançar pra 2008. Muitas instituições financeiras dos EUA passaram anos produzindo Mortgage Backed Securities (MBS), que são produtos financeiros lastreados no financiamento das casas (hipotecas). Os bancos juntavam muitas hipotecas num contrato só e vendiam para fundos de pensão, fundos de investimento, etc. Esses clientes passavam a ter direito ao fluxo do pagamento das hipotecas e o banco as retirava de seu balanço. Com o mercado imobiliário muito aquecido, os bancos e financeiras estavam ficando cada vez mais criativos nos financiamentos que ofereciam, para gerar mais hipotecas, para vender mais MBS e embolsar as comissões. Um tipo de financiamento, por exemplo previa parcelas pequenas no início, que aumentavam após algum tempo. As pessoas não entendiam, achavam que conseguiriam pagar, ou achavam que iam vender a casa antes da parcela aumentar (por um valor maior do que compraram, já que o valor das casas só subia).

Após passado esse tempo, porém, muitas dessas pessoas não foram capazes de fazer o pagamento, gerando calotes. Os calotes foram se acumulando e as casas postas à venda, para cobrir o prejuízo. Eventualmente o mercado imobiliário desaqueceu, com os valores das casas caindo, mesmo das casas cujos donos ainda pagavam suas hipotecas. Porém, alguns donos de casas viram que sua dívida da hipoteca era maior que o próprio valor da casa - e também pararam de pagar. Esse efeito dominó começou a atingir as MBS, que também começaram a serem vendidas, gerando o mesmo efeito, só que agora dentro do mercado financeiro. Pouco a pouco, algumas instituições financeiras foram falindo. Depois, fundos dentro de grandes bancos. E finalmente, após um fim de semana tenso em setembro de 2008, o centenário banco Lehman Brothers faliu. O efeito dominó, porém, não havia terminado, e ameaçava derrubar outros gigantes e desencadear uma enorme crise.

O que o Banco Central dos EUA fez, então? Começou a comprar as MBS, ou seja, o "café", agora inútil, que os bancos passaram anos produzindo. Na prática, elas ainda estão "estocadas" dentro do balanço do BC dos EUA (segunda imagem). Os bancos, assim como os cafeicultores brasileiros nos anos 30, não quebraram. Isso foi visto como necessário e o presidente do BC, Ben Bernanke, foi considerado a "Pessoa do Ano" pela revista Time em 2009. A economia real, no entanto, foi duramente atingida e dezenas de milhões de pessoas perderam os empregos, apesar dos trilhões de dólares que o BC injetou nos bancos.


Quantidade de MBS no balanço do Federal Reserve. Apesar das promessas de que seria um programa "temporário", os ativos podres continuam lá. (Fonte: FRED)

Avançando mais dez anos, em setembro de 2019 uma mini-crise começou no mercado interbancário (repo market), e o BC novamente interveio. A crise diminuiu e o mercado parecia estar mais calmo quando, em meados de fevereiro, a crise do coronavírus atingiu o mundo todo. Armado dessa desculpa, o BC passou a intervir massivamente no mercado, fazendo seu balanço saltar de US$4 trilhões para US$6 trilhões. Desta vez, porém, estão comprando de tudo. Só falta comprar ações de empresas. Muitos estão comemorando, ou então criticando quem acha que isso é absurdo e irracional, afinal, como o mundo pode continuar sem um sistema financeiro? E novamente, como sempre, quem terá sua riqueza garantida com essas medidas serão os executivos de grandes empresas, os banqueiros e os políticos. Até quando será que vamos continuar achando que banqueiros são heróis?

22/02/2020

Por que Bernie Sanders pode ganhar?

Na disputa pela candidatura do Partido Democrata, um nome está se descolando do resto e aparecendo na liderança sozinho. Ele é Bernie Sanders, um senador de Vermont que se define como um socialista democrático. Na sua plataforma de governo, há diversas propostas para diminuir a desigualdade através de intervenção estatal. Entre elas, um imposto sobre "fortunas extremas" que começa em 1% para quem possui mais de US$32 milhões em bens e vai até 8% para quem tem mais de US$10 bilhões. O imposto não incide sobre a renda, mas sobre os bens, e o objetivo é "em 15 anos, cortar pela metade o patrimônio dos bilionários". Além disso, ele apoia o "New Deal Verde" (1), um plano para transformar a matriz energética dos EUA e chegar a 100% de energia renovável em 2030, ou seja, por meio de leis e regulação, vai atacar de frente a indústria de hidrocarbonetos.

Na parte social, ele quer expandir o Social Security para dar cobertura de saúde para todos os habitantes dos EUA e diminuir os preços dos remédios. Para habitação, propõe um investimento de US$2,5 trilhões para construir 10 milhões de casas populares. Na sua plataforma, também há um plano para cancelar US$1,6 trilhão em dívidas estudantis de 46 milhões de jovens. Em resumo, todo mundo ganharia algo "de graça" com Bernie presidente - menos os bilionários, donos de empresas da área de saúde, de petroleiras, etc.

As falas e os planos dos candidato batem de frente com séculos de cultura dos EUA e, talvez mais importante, com interesses poderosos. A influência das corporações na política é notável. Bilhões fluem delas para os congressistas, senadores, etc., através de lobistas e da "porta giratória" (2). Ao mesmo tempo, elas são as financiadoras da grande mídia e raramente um ponto de vista que as antagonize é transmitido aos cidadãos. Ou seja, há uma enorme vontade de acabar com a candidatura de Sanders.

Bernie Sanders num comício em Nevada. Foto: Washington Post.

O problema é que nesta edição de 2020, alguns fatores se alinharam para que ele despontasse em popularidade. Primeiro, a economia. A taxa de desemprego se encontra na mínima histórica, mas isso não significa que o mercado de trabalho esteja bom. Isso porque se você trabalhou por duas horas na última semana, com remuneração, você é considerado "empregado" nos EUA. Quem está desempregado e desistiu de procurar emprego não entra na conta do desemprego. Isso resulta num total de 95 milhões de estadunidenses acima de 16 anos fora do mercado de trabalho, além dos quase 6 milhões de desempregados oficialmente. Numa população total de 327 milhões, isso significa que cerca de um terço está em situação muito precária. E entre os 165 milhões de trabalhadores empregados, cerca de 148 milhões ganham pouco mais que dois salários mínimos, em média. Por isso, quando Bernie fala da injustiça do sistema dos EUA, que deixa a maior parte da população nessa situação enquanto faz a fortuna do 0.1% mais rico se multiplicar nos últimos anos, ele encontra muitos pares de ouvidos dispostos a escutar.

O segundo fator é o grande número de pessoas tentando a vaga de candidato(a) democrata. Isso faz com que não haja um rival forte contra Sanders, que terminou em primeiro lugar no voto popular nas duas primárias que já ocorreram. Joe Biden, ex-Vice Presidente de Barack Obama, era o favorito no início mas o resultado das duas primárias iniciais praticamente acabou com suas chances, tendo terminado em quarto lugar em Iowa e quinto em Nova Hampshire. A senadora Elizabeth Warren, endossada pelo New York Times, e considerada a rival mais direta de Sanders, terminou em em terceiro e quarto lugares. Pete Buttigieg, ex-prefeito de South Bend, Indiana, tem o apoio de parte do aparato Democrata que quer desesperadamente colocar um centrista na eleição para presidente, e acabou em segundo lugar nas duas, porém ficou com mais delegados que Sanders.

O terceiro fator é a força que ele tem contra seu possível adversário, Donald Trump. Um participante formidável em debates, Trump emplaca apelido atrás de apelido, mexe com a parte psicológica e assim enfraquece e desmoraliza seus rivais. Num exemplo emblemático das eleições de 2016, ele deixou Jeb Bush visivelmente alterado num debate (Jeb desistiu pouco depois). Muito antes de Warren lançar sua campanha, ele chamou atenção para o fato de que ela se autodeclarou "indígena" ao aplicar para uma vaga em Harvard, e lhe deu o apelido de "Pocahontas". Desafiada, a senadora fez um teste de DNA que mostrou que ela era apenas 0,005% indígena. O apelido pegou de vez e ela ficou com a fama de mentirosa.

Joe Biden, um dos candidatos mais velhos no certame, é propenso a se confundir e seu ritmo de fala não é dos mais enérgicos. Isso lhe deu o apelido de "Sleepy Joe" (Joe Dorminhoco). Depois, virou "Creepy/Sleepy Joe", (Joe Asqueroso/Dorminhoco), uma referência às diversas vezes que Joe foi gravado acariciando mulheres e crianças de maneira estranha. Michael Bloomberg, que recentemente se juntou a corrida, se tornou "Mini Mike", uma referência a sua baixa estatura - ele já se utilizou de um banquinho para parecer mais alto no púlpito. Sanders, por sua vez, só foi chamado de "Crazy Bernie" (Bernie Maluco) e "The Nutty Professor" (O Professor Aloprado), que comparado com os outros, são bem mais leves. Ou seja, parece que até para Trump o senador socialista tem menos pontos fracos que os outros. Ele mesmo admitiu, num áudio recentemente vazado, que seria mais difícil bater Hillary em 2016, se ela tivesse escolhido Bernie para ser seu parceiro como Vice-Presidente.

Além disso, já nas eleições de 2016 as pesquisas apontavam que Sanders ganharia com facilidade uma disputa direta com Trump, algo que os Democratas ignoraram completamente, jogando seu peso em Hillary Clinton, que tinha margens bem mais apertadas. As pesquisas, aliás, erraram muito nas eleições de 2016 - até a véspera, as chances de Clinton ganhar eram de 90%, de acordo com uma delas - e parecem estar errando novamente, já que Biden, que teve uma performance muito fraca, era considerado o favorito chegando em Iowa. Por outro lado, elas também apontam uma vitória de Bernie caso ele chegue até a corrida final.

O quarto e último fator é que o atual presidente não é muito popular. Ele assumiu com 45% de aprovação, foi caindo, e passou o primeiro ano da presidência abaixo de 40%. Barack Obama, por exemplo, logo que assumiu passou seis meses com aprovação acima de 60% e em oito anos de mandato nunca ficou abaixo de 40%. Trump só recentemente chegou perto de 50% de aprovação. Ou seja, por mais que ele seja o presidente em exercício, que sempre traz benefícios, sua eleição está longe de ser uma certeza.

Tudo isso faz com que o senador, além de ter chances muito reais de ganhar as primárias e ficar cara-a-cara com Donald Trump, também tenha um caminho para ganhar a presidência e se tornar o primeiro presidente socialista dos EUA. Essa ideia deve arrepiar os cabelos daqueles poderosos interesses descritos acima, que com certeza não estão assistindo tudo isso parados. Aparentemente, um dos planos agora é se unir sob a candidatura de Michael Bloomberg, ex-prefeito de Nova Iorque, na esperança de que ele ganhe algumas centenas de delegados e impossibilite uma vitória de Sanders na convenção do partido em julho. Sem um vitorioso lá, as regras mudam e a elite do partido tem muito mais liberdade para escolher seu candidato - e aí poderão colocam Bloomberg ou Buttigieg, mesmo que isso signifique perder as eleições para Trump. Pelo menos, os bilionários poderão dormir tranquilos.

(1) Uma referência ao New Deal de Franklin D. Roosevelt, um plano de obras públicas que ajudou a reerguer a economia estadunidense após a crise de 1929.

(2) A "porta giratória" ocorre quando um congressista sai do serviço público diretamente para um emprego numa corporação que se beneficiou de alguma decisão feita por ele durante seu mandato. Depois ele volta pro Congresso, e assim em diante.

14/02/2020

Bem-me-quer, mal-me-quer: O Partido Democrata e Bernie Sanders

Nas eleições para presidência dos EUA em 2016, este blog remou um pouco contra a corrente, pra variar, e lançou dois artigos desmistificando Hillary Clinton (aqui e aqui). Na época, ela e Bernie Sanders eram os concorrentes a vaga de candidato a presidência dos Estados Unidos pelo Partido Democrata. Apesar da grande fama, do nome forte, de uma administração democrata que deixou o desemprego nas mínimas históricas e da perspectiva de uma mulher ganhar a Casa Branca, em nenhum momento Hillary empolgou os eleitores. O problema era que enquanto a forma parecia perfeita, o conteúdo dela era um centrismo "sem sal". O eleitorado democrata parecia muito mais entusiasmado com a ideia de ter Bernie Sanders como candidato.

Enquanto Hillary recebia toneladas de dinheiro de lobistas, do mercado financeiro e das grandes corporações, Bernie discursava sobre as injustiças do sistema estadunidense e teve o maior número de doadores individuais da história. Sim, a economia parecia ir bem, dizia Sanders, mas nos últimos dez anos, o 1% mais rico ficou mais rico, a grande maioria ficou estagnada e os mais pobres ficaram mais pobres. Sim, o desemprego está baixíssimo, mas agora muitos tem mais de um emprego, milhões desistiram de procurar e os empregos ficaram cada vez mais precários. Ele levava multidões aos seus comícios; ela, nem tanto.

Bernie Sanders discursa em Nova Hampshire, antes de sua vitória, na terça-feira, 11 de fevereiro. Foto: Reuters

Do lado republicano, quase uma dúzia de pessoas disputavam as primárias para decidir quem seria o candidato. Donald Trump, até então um bilionário famoso em Nova Iorque, que nunca havia se candidatado a nada, resolveu tentar ser presidente. Com seu jeito direto de falar e uma presença de palco incomum, habilidade que desenvolveu ao longo de décadas estando na TV e tendo seu reality show, ele começou a atropelar seus adversários nos debates. Usando um misto de insultos aos adversários, falas apelativas e uma campanha de marketing sofisticada, ele foi ganhando uma primária atrás da outra, até que sua candidatura se tornou inevitável. Assim como Sanders, ele entusiasmava as plateias de seus discursos. As pesquisas mostravam que ele ganharia contra Hillary, mas perderia contra Sanders.

O Partido Democrata, no entanto, fez de tudo para barrar a candidatura do independente (1) socialista. Parte da campanha contra ele estava dentro das regras, pois como ele não era filiado ao partido, eles não eram obrigados a ajudá-lo. Outra parte envolveu muitas matérias plantadas na mídia e até uma âncora da CNN mandando as questões de um debate para uma pessoa ligada a Hillary. Tal campanha foi revelada por um vazamento dos e-mails do diretório nacional para o Wikileaks. Posteriormente, acusaram a inteligência russa de ter feito tal vazamento, que pegou muito mal para Hillary e que, segundo ela, foi responsável pela eleição de Trump. Na comoção que se seguiu, os Democratas no Congresso abriram uma investigação contra o presidente eleito para buscar seus possíveis laços com os russos, o que não deu em nada, apesar de desgastá-lo por quase dois anos.

Avançando para as eleições atuais, desta vez é o campo Democrata que tem uma dúzia de candidatos. Novamente, Sanders se lançou como candidato e passou a receber uma saraivada de ataques na imprensa. Além de diversos casos de distorção óbvia, nos quais as manchetes ou chamadas das matérias simplesmente omitiam o fato de que o senador de Vermont estava indo bem nas pesquisas ou até mudavam os dados, em todos os debates o viés anti-Bernie tem sido transparente. Os mediadores sempre guardavam as perguntas mais agressivas e incisivas para ele, enquanto simplesmente "levantavam a bola" para seus oponentes falarem de suas qualidades ou se juntarem ao coro nos ataques ao socialista. Quem também deu seu pitaco foi a própria Hillary Clinton, que disse, numa entrevista, que "ninguém gosta" do senador e se recusou a afirmar que o apoiaria caso ele fosse nomeado pelo seu partido. Isso apesar dele ter feito mais de 40 discursos em apoio a ela em 2016.

Nas duas primárias que já ocorreram, Iowa e Nova Hampshire, ele ganhou o voto popular, apesar de ficar com mais ou menos o mesmo número de delegados que um dos queridinhos do Partido, Pete Buttigieg, por causa da matemática maluca que rege essas eleições. Isso está deixando os lobistas e a própria grande mídia em pânico. Por conta desse processo de escolha gradual, vitórias no início asseguram a viabilidade do candidato e tendem a garantir mais votos para os ganhadores dessas primárias. O candidato precisa atingir o número de 1991 delegados até a convenção do partido, em julho, para garantir sua vaga. Agora é a fase inicial, e faltam duas votações - Nevada, no dia 22 de fevereiro, e Carolina do Sul, no dia 29. Daí, no dia 3 de março, a "Super Terça-Feira", nada menos que 1344 delegados estarão em disputa. Ou seja, o candidato ou candidata que chega bem nessa data pode praticamente decidir a nomeação.

Isso significa que o Partido Democrata tem pouco mais de duas semanas para conter uma onda de apoio a Sanders. Para isso, além de Buttigieg, outro candidato apareceu para embolar a disputa: o bilionário Michael Bloomberg, uma das pessoas mais ricas do mundo. Em pouco tempo, ele quebrou todos os recordes de gastos em sua campanha - e isso é a parte declarada. Logo após a entrada de Bloomberg, o Partido alterou algumas regras para que ele pudesse participar de um debate, por exemplo, mostrando que estão dispostos a ajudá-lo. Nem Buttigieg, nem Bloomberg, possuem a mesma base eleitoral que Sanders. Eles não tem a mesma projeção nacional que ele construiu ao longo de várias campanhas, nem seus discursos empolgam. Novamente, parece que os Democratas preferem não eleger ninguém - e, no caso, eleger Donald Trump - ao invés de eleger Bernie Sanders.

(1) Nos EUA as regras permitem que se lance uma candidatura independente para as primárias.
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