15/07/2017

Filmadoras e Armas, parte 2

Al Pacino, na frente do selo da CIA, em O Novato (2003).

Em julho de 2015 eu escrevi uma coluna no jornal Hora do Povo sobre o Office of Entertainment Liaison (Escritório de Relações de Entretenimento, numa tradução livre) do Departamento de Defesa dos EUA. Esse Escritório foi alvo de um processo de acesso a documentos iniciado por Tom Secker, do site SpyCulture, que obteve um grande número de documentos até então inéditos. Na coluna, eu escrevi:

Esse escritório funciona da seguinte maneira: quando um produtor de TV, de filmes, de videogames, etc., quer fazer algo sobre os militares, esse escritório pode ser contatado para conseguir ajuda. Recentemente, dois pesquisadores obtiveram deles documentos internos – inéditos até então – que revelam a extensão do relacionamento do Pentágono com o mundo do entretenimento.

(…)

Essa remessa de documentos é o pontapé inicial para se aprofundar nessa relação ambígua entre o Departamento de Defesa e a indústria do entretenimento. Neles não há nada sobre os acordos em si, ou seja, uma descrição do que exatamente foi pedido que o diretor X ou Y modificasse na sua obra em troca de colaboração. Outro aspecto notável do documento é que todos os nomes dos militares foram retirados do documento – ninguém pode ser contatado para uma entrevista, por exemplo.
Semana passada, isso mudou. Um novo artigo de Tom Secker e Matthew Alford detalha suas investigações sobre mais 4.000 páginas, inéditas, de documentos do Pentágono e da CIA sobre o assunto. Desta vez, há detalhes sobre os pedidos de alteração dos roteiros. Segundo os autores,


Se há personagens, ações ou diálogos que o Departamento de Defesa não aprova, então o cineasta tem que fazer mudanças para acomodar as demandas dos militares. Se eles se recusam, o Pentágono recolhe seus brinquedos e vai pra casa. Para obter cooperação total os produtores devem assinar contratos – Acordos de Assistência de Produção – que os prendem a uma versão do roteiro que os militares aprovarem.

O Homem de Ferro, Transformers, O Novato, Jogos Patrióticos, Salt, Hulk, O Amanha Nunca Morre (e outros da franquia James Bond), Top Gun, A Hora Mais Escura, Inimigo do Estado estão entre os filmes nomeados no artigo. Os autores também lançaram um livro, chamado National Security Cinema (Cinema de Segurança Nacional). Sobre o filme Hulk, os autores dizem:

O Vietnã é evidentemente outro tópico delicado para os militares estadunidenses, que removeram uma referência a essa guerra do roteiro de Hulk (2003). Apesar dos militares não receberem créditos no final do filme, no IMDB ou na base de dados do próprio Departamento de Defesa, nós obtivemos um dossiê dos Fuzileiros Navais dos EUA detalhando suas mudanças ‘radicais’ no roteiro.

Elas incluiram transformar o laboratório onde Hulk é acidentalmente criado numa instalação não-militar, transformar o diretor do laboratório num personagem ex-militar, e mudar o codinome da operação militar para capturar o Hulk de ‘Ranch Hand’ (Mão de Rancho) para ‘Angry Man’ (Homem Bravo).

‘Ranch Hand’ é o nome de uma operação militar real que fez a Força Aérea despejar milhões de litros de pesticidas e outros venenos na área rural do Vietnã, fazendo com que milhões de acres de terra ficassem envenenados e inférteis.

Eles também removeram diálogos que se referiam a ‘todos aqueles meninos, ratos de laboratório, morrendo de radiação e de armas químicas’, uma aparente referência a experimentos militares secretos em cobaias humanas.
A CIA também faz sua parte. O nome do funcionário da Agência responsável pela interação com a indústria do entretenimento é Chase Brandon. Os autores dão um exemplo, no filme “Entrando numa Fria”. Sim, aquela comédia do Ben Stiller. Os autores escrevem:
Num tipo de filme muito diferente, a comédia romântica muito popular Entrando numa Fria, Brandon pediu que eles mudassem uma cena onde o personagem de Ben Stiller descobre o quarto secreto de Robert De Niro (o futuro sogro de Stiller). No roteiro original Stiller encontra manuais de tortura da CIA numa mesa, mas Brandon mudou isso para fotos de Robert De Niro com várias figuras importantes.

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Quando assistimos os filmes hollywoodianos que retratam os EUA como o grande bastião da defesa do bem, da democracia e dos valores humanos mais nobres, temos a sensação de que aquilo é um exagero, mas que faz parte da cultura deles. Ou seja, pensamos que os roteiristas e diretores sentem a necessidade de mostrar os EUA daquela forma. Porém, com essa leva de documentos, agora temos a certeza de que essa forma não é a expressão artística espontânea dessas pessoas. Há a influência direta de funcionários do Pentágono e da CIA que elaboram jeitos de mostrar os EUA sob esse ângulo. E os produtores, diretores e roteiristas aceitam, pois esse é o único jeito de obter os locais de filmagem e os “brinquedos” que pertencem ao Pentágono ou a CIA.

Pode ter certeza, se estiver assistindo um filme que mostra o interior de uma base militar, dos escritórios da CIA, ou com longas cenas com caças, navios ou tanques, os produtores assinaram um contrato que deu parte do controle do roteiro para o Pentágono ou para a CIA. Portanto, nesse filme, você não verá grandes críticas aos EUA. Pelo contrário, o filme te mostrará o que eles querem que você veja. No mínimo, ele não fará você questionar as guerras travadas pelo império. Missão cumprida.

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