15/04/2020

A queima do café e o COVID-19

Em 1931, o governo brasileiro comprou e queimou estoques de café. Essa medida para intervir nos preços do café teve pouco efeito na economia em geral - mas encheu os bolsos de alguns cafeicultores que corriam o risco de perderem a safra inteira. O governo, imprimindo dinheiro, comprou o produto que estava com baixa demanda e garantiu que alguns barões não quebrassem. Em geral nós olhamos para essa medida e achamos absurda, irracional, altamente intervencionista e parcial.

Queima do café em Santos. (Fonte: Revista Época)


Vamos avançar pra 2008. Muitas instituições financeiras dos EUA passaram anos produzindo Mortgage Backed Securities (MBS), que são produtos financeiros lastreados no financiamento das casas (hipotecas). Os bancos juntavam muitas hipotecas num contrato só e vendiam para fundos de pensão, fundos de investimento, etc. Esses clientes passavam a ter direito ao fluxo do pagamento das hipotecas e o banco as retirava de seu balanço. Com o mercado imobiliário muito aquecido, os bancos e financeiras estavam ficando cada vez mais criativos nos financiamentos que ofereciam, para gerar mais hipotecas, para vender mais MBS e embolsar as comissões. Um tipo de financiamento, por exemplo previa parcelas pequenas no início, que aumentavam após algum tempo. As pessoas não entendiam, achavam que conseguiriam pagar, ou achavam que iam vender a casa antes da parcela aumentar (por um valor maior do que compraram, já que o valor das casas só subia).

Após passado esse tempo, porém, muitas dessas pessoas não foram capazes de fazer o pagamento, gerando calotes. Os calotes foram se acumulando e as casas postas à venda, para cobrir o prejuízo. Eventualmente o mercado imobiliário desaqueceu, com os valores das casas caindo, mesmo das casas cujos donos ainda pagavam suas hipotecas. Porém, alguns donos de casas viram que sua dívida da hipoteca era maior que o próprio valor da casa - e também pararam de pagar. Esse efeito dominó começou a atingir as MBS, que também começaram a serem vendidas, gerando o mesmo efeito, só que agora dentro do mercado financeiro. Pouco a pouco, algumas instituições financeiras foram falindo. Depois, fundos dentro de grandes bancos. E finalmente, após um fim de semana tenso em setembro de 2008, o centenário banco Lehman Brothers faliu. O efeito dominó, porém, não havia terminado, e ameaçava derrubar outros gigantes e desencadear uma enorme crise.

O que o Banco Central dos EUA fez, então? Começou a comprar as MBS, ou seja, o "café", agora inútil, que os bancos passaram anos produzindo. Na prática, elas ainda estão "estocadas" dentro do balanço do BC dos EUA (segunda imagem). Os bancos, assim como os cafeicultores brasileiros nos anos 30, não quebraram. Isso foi visto como necessário e o presidente do BC, Ben Bernanke, foi considerado a "Pessoa do Ano" pela revista Time em 2009. A economia real, no entanto, foi duramente atingida e dezenas de milhões de pessoas perderam os empregos, apesar dos trilhões de dólares que o BC injetou nos bancos.


Quantidade de MBS no balanço do Federal Reserve. Apesar das promessas de que seria um programa "temporário", os ativos podres continuam lá. (Fonte: FRED)

Avançando mais dez anos, em setembro de 2019 uma mini-crise começou no mercado interbancário (repo market), e o BC novamente interveio. A crise diminuiu e o mercado parecia estar mais calmo quando, em meados de fevereiro, a crise do coronavírus atingiu o mundo todo. Armado dessa desculpa, o BC passou a intervir massivamente no mercado, fazendo seu balanço saltar de US$4 trilhões para US$6 trilhões. Desta vez, porém, estão comprando de tudo. Só falta comprar ações de empresas. Muitos estão comemorando, ou então criticando quem acha que isso é absurdo e irracional, afinal, como o mundo pode continuar sem um sistema financeiro? E novamente, como sempre, quem terá sua riqueza garantida com essas medidas serão os executivos de grandes empresas, os banqueiros e os políticos. Até quando será que vamos continuar achando que banqueiros são heróis?

2 comentários:

  1. Oi :) cheguei aqui por um comentário seu no The Intercept. Gostei do blog

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  2. Fiquei pensando depois que poderia ter enfatizado a ideia dos "ativos podres", pois é dessa forma que a mídia se refere aos títulos de MBS comprados pelo Fed durante a crise de 2008.

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