07/02/2020

Os EUA não querem a paz

Os Estados Unidos da América são o único país onde sempre se debate a possibilidade de bombardear outro país, sem que haja uma guerra declarada entre ambos. Eles nunca foram bombardeados em seu território por forças inimigas em toda sua história, mas possuem o mais complexo e sofisticado aparelho militar do mundo, centenas de bases em territórios estrangeiros (1) e já bombardearam, só nos últimos dez anos, sete países diferentes (2). O Pentágono possui diversos comandos centrais que cobrem todo o globo, a Internet e agora até o espaço sideral (3). O Comando de Operações Especiais, por sua vez, atua em mais de 120 países em missões de treinamento e outras secretas, segundo estimativas. A National Security Agency (NSA - Agência de Segurança Nacional) possui o maior aparato de vigilância da história e uma instalação em Utah pretende ter espaço de armazenamento suficiente para gravar tudo que ela monitora, num permanente estado de guerra.

O Artigo 1º da Constituição dos EUA determina que apenas o Congresso pode declarar guerra. Esse documento, elaborado em meados do século 18, era uma resposta incisiva ao absolutismo e os constituintes entendiam que o poder de declarar guerra jamais poderia ficar nas mãos de uma só pessoa. Pelo contrário, deveria estar nas mãos do povo, por meio de seus representantes eleitos no Congresso, que deveriam debater abertamente as questões de guerra. A última vez que a Constituição foi respeitada, porém, foi na Segunda Guerra Mundial, quando o Presidente Franklin D. Roosevelt declarou guerra contra o Japão e em seguida contra o resto do Eixo - Alemanha e Itália - em 1941, e um ano depois contra outros países aliados ao Eixo (Hungria, Bulgária e Romênia). Nos quase 80 anos que se sucederam, todos as operações militares não foram acompanhadas dessa declaração de guerra aprovada pelo Congresso.

Selo das Forças Espaciais dos EUA, em sua tentativa de dominar até o Espaço Sideral.
Todas essas operações são autorizadas por um misto de ordens secretas, ordens aprovadas por um comitê de deputados muito estrito (chamado de "Gangue de Oito") ou ordens tão amplas que podem ser aplicadas a praticamente qualquer coisa. Durante a Guerra do Vietnã, por exemplo, a CIA e a Força Aérea dos EUA bombardearam o Laos e o Camboja secretamente, sob ordens presidenciais. Nem o Congresso nem o público foram avisados dessa campanha, que só veio a tona com um vazamento para um jornalista e com o escândalo Watergate e as subsequentes investigações do Congresso. A guerra com drones, por sua vez, se iniciou em 2001 mas só teve seus detalhes revelados em 2015, num vazamento para o The Intercept. Numa série de matérias, foi mostrado que havia um processo envolvendo os mais altos níveis da administração dos EUA, no qual oficiais decidiam quem devia morrer, literalmente. O programa continua a pleno vapor, já que os recentes assassinatos do general iraniano Qassem Soleimani e o vice-comandante das Forças de Mobilização Popular do Iraque, Abu Mahdi Al-Muhandis, foram fruto desse programa.

Além das campanhas de bombardeio, os EUA conduziram inúmeras guerras secretas por meio da CIA, que utiliza desde rádios piratas e redes sociais, passando pelo apoio a organizações políticas, think tanks e até financiamento de organizações paramilitares. Na guerra civil da Síria, a CIA canalizou um bilhão de dólares em 5 anos para financiar organizações rebeldes armadas. Duzentos milhões de dólares por ano não são nada perto dos orçamentos das guerras do Iraque e Afeganistão, que giram na casa dos trilhões, mas são uma quantidade enorme de dinheiro na Síria, cujo PIB estava em torno de 60 bilhões em 2010, antes da guerra começar. Mantendo as proporções, seria como se a CIA gastasse 7 bilhões de dólares, ou um quarto do orçamento total do Ministério da Defesa brasileiro, num exército paramilitar para invadir o Brasil. Parte das armas da CIA que chegaram ao Exército da Libertação da Síria (Free Syrian Army) acabaram indo parar nas mãos da Jabhat Al Nusra (associada a Al Qaeda) e do próprio Estado Islâmico.

As gigantes da indústria armamentista dos EUA, todas empresas públicas, listadas na Bolsa de Valores. Juntas, tem um valor de mercado equivalente ao das nove maiores empresas listadas na bolsa de valores brasileira (Petrobras, Itaú, Ambev, Vale, Bradesco, Santander, Banco do Brasil, Itaú SA e B3).
O orçamento total de operações de guerra abertas e clandestinas é praticamente incalculável. O Pentágono, com seu orçamento de mais de 700 bilhões de dólares este ano, falhou todas as auditorias de suas contas, e há inúmeras agências que possuem um orçamento secreto. Pra se ter uma ideia, até a década de 70, a própria existência da NSA era secreta e a existência do National Reconnaissance Office (NRO - Escritório de Mapeamento Nacional) não foi revelada ao público até a década de 90, apesar da agência ter sido formada quatro décadas antes. O território nacional dos EUA é coberto de bases militares, gerando uma enorme dependência política. As bases movimentam a economia local e trazem milhares de empregos, fazendo com que os deputados tenham que garantir o orçamento que as mantém abertas, para não desagradar sua base eleitoral. A indústria de armamentos mundial é dominada por empresas dos EUA, e seus contratos fazem parte da própria política externa do país. Em alguns momentos, o Departamento de Estado e seus embaixadores agem quase que como lobistas ou vendedores dessas empresas.

Por fim, a guerra e as Forças Armadas são tema de inúmeros filmes e séries de Hollywood. Alguns dos filmes com as maiores bilheterias dos últimos anos tiveram alguma influência dos militares. Em troca de deixarem os produtores utilizarem as bases, os aviões, tanques, submarinos e porta-aviões, eles fazem alguns "ajustes" nos roteiros, sempre no sentido de melhorar a imagem deles e retirar críticas ou qualquer cena que possa mostrar um militar fazendo algo ruim. Ou seja, além do domínio militar duro, da influência clandestina, da economia e da política interna e externa, a guerra faz parte da cultura e da identidade estadunidense, num processo de construção que ocorre há décadas. Portanto, quando ouvir algum oficial desse governo falar em "paz", desconfie.

Notas:

(1) - Alguns dos países que sediam bases ou tropas estadunidenses são: Alemanha, Japão, Itália, Romênia, Bulgária, Polônia, Arábia Saudita, Bahrein, Djibouti, Qatar, Nigéria, Camarões, as ilhas de Diego Garcia e Guam, Filipinas, Coréia do Sul e outros. Além disso, os EUA ocupam o Iraque, o Afeganistão e a Síria.
(2) - Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria, Somália (com drones), Paquistão (com drones) e Iêmen (com drones).
(3) - Os comandos militares regionais são seis: NORTHCOM, que cobre a América do Norte e Caribe, SOUTHCOM, que cobre a América Central e do Sul, AFRICOM, que cobre a África, EUCOM, que cobre a Europa, CENTCOM, que cobre o Oriente Médio e parte da Ásia e o INDOPACOM que cobre Ásia e Oceania. No ano passado, foi re-estabelecido o SPACECOM, para comandar operações no espaço sideral, e a Força Espacial foi fundada como um braço separado das Forças Armadas.

Um comentário:

  1. Curto, preciso é inteligente panorama da presença americana no mundo. Parabéns Caio.

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