23/03/2016

Desmistificando Hillary

Mais um dia de primárias nos EUA, com resultados mistos. No Arizona, deu Clinton e Trump. No Idaho, os democratas votaram por Sanders (os republicanos decidiram por Ted Cruz duas semanas atrás). No Utah, Sanders com quase 80% dos votos, e Ted Cruz ganhou do lado republicano.

Com a saída de Marco Rubio do páreo, os republicanos podem escolher entre Donald Trump, Ted Cruz e John Kasich. Kasich parece estar mantendo sua candidatura simplesmente para dispersar os votos dos republicanos e assim evitar que Trump consiga uma maioria definitiva. 

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Eu gosto de fazer o advogado do diabo em relação a Trump. A principal razão é a seguinte: se Trump tem posições radicais, fascistas, como dizem muitos, o que dizer de Hillary Clinton?

A princípio, a pergunta pode soar absurda, afinal ela se declara progressista, e sua imagem é de uma ex-ativista dos direitos civis, uma feminista, uma ex-Primeira Dama que traçou uma forte carreira na política por conta própria. Mas quais são suas posições, e a que interesses sua presidência serviria?

Como descrevi no meu post anterior, uma análise mais detida nos mostra uma outra Hillary. Durante uma entrevista no dia 20 de outubro de 2011, quando ainda era Secretária de Estado, ela recebeu a notícia que Muammar al-Gaddafi havia sido morto. Rindo, disse "nós viemos, nós vimos, ele morreu!", num trocadilho com a frase em latim "Veni, vidi, vici" (Vim, vi, venci). A sua posição no governo era diplomática; ela não era uma comandante militar com a missão de matar o ditador da Líbia. Por que tanta felicidade?

Na segunda-feira, 21 de março, Hillary palestrou na conferência da AIPAC. Para quem não conhece, a AIPAC é o grupo de lobby pró-Israel mais influente nos EUA. Seu discurso foi uma sinfonia de adulação. Começando com "É maravilhoso estar aqui e ver tantos amigos" e sendo muito aplaudida, falou de como os israelenses vivem num estado de medo por conta dos terroristas palestinos. Reafirmou e reafirmou seu comprometimento com a aliança estratégica entre os EUA e Israel, propondo um novo acordo de dez anos para garantir a "Qualitative Military Edge" (Vantagem Militar Qualitativa") de Israel. Esse acordo garante, por lei, que Israel sempre será o primeiro país da região a receber novas tecnologias militares, ou seja, sempre mantendo sua superioridade em relação aos vizinhos que também possuem acordos militares com os EUA. Isso também garante que o rico estado de Israel receba bilhões de "ajuda" do governo estadunidense.

A candidata disse também que "a América não pode ser neutra em relação a segurança e a existência de Israel", num ataque a Donald Trump. Trump critica o envolvimento dos EUA em custosas guerras no Oriente Médio, argumentando que o país estaria muito melhor caso os trilhões fossem investidos em infraestrutura doméstica. Hillary também duramente sobre o Irã, o associando a violência na região. Seu tom parece querer deixar claro que ela não teria medo de utilizar força militar em diversas situações.

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Deixando a política externa de lado, quais outros interesses será que Hillary defenderia caso fosse presidente? O mais óbvio é Wall Street, algo que Bernie Sanders vem atacando faz tempo.

A Fundação Clinton recebeu milhões de dólares de Wall Street nos últimos anos. Goldman Sachs, Citigroup, HSBC, Barclays, Wells Fargo, JP Morgan, Blackstone Group, UBS, Deutsche Bank, Morgan Stanley, Merril Lynch; todos contribuíram para a Fundação. Todos também estavam no centro do criminoso colapso financeiro de 2008, que não resultou em praticamente nenhuma condenação por conta da política de Obama de "olhar para frente, não para trás". Essa crise acelerou a concentração de renda, que chegou a níveis jamais vistos. Os banqueiros usaram milhões de dólares do tesouro dos EUA para pagarem polpudos bônus a si próprios, enquanto milhões de pessoas perdiam seus empregos e até suas casas, caindo na miséria.

Em janeiro, quando perguntada por um jornalista do The Intercept, Lee Fang, se divulgaria a transcrição de seus discursos ao Goldman Sachs, ela simplesmente riu e não respondeu (segundo uma pessoa presente num discurso proferido por Hillary em 2013 - pela módica quantia de US$225 mil - ela "soava mais como um diretor do Goldman Sachs"). Pouco tempo depois, foi perguntada novamente, durante um debate em rede nacional, e disse que iria "pensar sobre o caso". Em outro debate, perguntada novamente, tinha uma resposta pronta: só liberará as transcrições caso todos os outros candidatos também façam o mesmo. Por que essa extrema relutância em divulgar seus discursos? O meu palpite é que discursos bajulando banqueiros criminosos não cairiam nada bem com os 99% da população que não se beneficiaram nem um pouco da crise.

Além disso, há a investigação em aberto do FBI sobre o uso ilegal de um servidor pessoal de e-mails na época que ela era Secretária de Estado. O escândalo, que só foi notícia ano passado, mas que continua em desenvolvimento, é gravíssimo a ameaça a própria elegibilidade de Clinton. Mas vai ficar pra outro post...

17/03/2016

"Trump ou Clinton, que diferença isso faz?" - Coluna no jornal Hora do Povo, 17/03

Trump ou Clinton, que diferença isso faz?

As eleições dos EUA estão tomando uma forma cada vez mais definida conforme as primárias avançam. Os eleitores Republicanos estão mandando uma mensagem muito clara: querem Donald Trump como seu candidato. Os líderes do partido, no entanto, estão com medo dessa possibilidade. Do lado Democrata, há uma divisão entre Hillary Clinton e Bernie Sanders. Clinton comanda um aparato político e de propaganda formidável, que não teve escrúpulos para atacar Sanders e se blindar. Sanders tem um considerável apelo popular – inclusive entre os militares, segundo uma pesquisa que saiu no jornal MilitaryTimesmas deve perder a nomeação.

O medo do aparato político Republicano do candidato Trump se deve a vários fatores. O central, porém, é que ele não pode ser controlado da mesma forma que outros candidatos poderiam ser, já que não é um político de carreira. Ted Cruz e Marco Rubio andam nos corredores do Congresso há anos e recebem dinheiro de diversos lobbys. Portanto, estão firmemente atrelados aos interesses de certos grupos. É só ver como Cruz e Rubio aproveitam toda oportunidade para louvar a aliança EUA-Israel, enquanto Trump diz que quer se desvencilhar de todo o conflito no Oriente Médio.

Hillary Clinton, por sua vez, votou a favor da guerra ao Iraque, comemorou a morte de Kaddafi, que deixou a Líbia no completo caos, e apoiou o programa para armar rebeldes na Síria, que gerou uma guerra catastrófica, abriu caminho para o Estado Islâmico e botou lenha na fogueira de uma enorme crise de imigração. Sanders, por sua vez, tem uma posição mais pacifista, mas como disse, não deve disputar a presidência.

Mas no final das contas, é praticamente tudo jogo de cena. Quem toma a cadeira do Presidente na Casa Branca, faz alguma diferença? Um dos maiores exemplos talvez seja o ocupante atual, Barack Obama. Alçado à Casa Branca numa onda popular baseada na “Esperança”, na “Mudança” e no “Sim, nós podemos”, ganhou o prêmio Nobel da Paz antes mesmo de completar um ano na presidência. Hoje, ele é o presidente que autorizou mais ataques por drones, manteve aberta a prisão criminosa de Guantánamo e não fez nada em relação a espionagem emmassa da National Security Agency, a NSA. Assinou a maior venda de equipamento militar da história, no valor de US$ 60 bilhões –para a Arábia Saudita, que agora utiliza o equipamento para bombardear a pobre nação do Iêmen. Ainda por cima, é o presidente que mais perseguiu cidadãos estadunidenses pelo crime de “espionagem”. Entre aspas, já que nenhum dos acusados foi preso por fornecer informações secretas para outro país. Em geral, o crime desses cidadãos foi ir a público com informações de que um ou outro programa da CIA, da NSA, do FBI, etc., estava indo muito além do que a lei permitia…

GOVERNO SECRETO

Em 1964, um livro seminal sobre a CIA foi escrito por David Wise e Thomas B. Ross. O título era “O Governo Invisível”, e falava sobre as inúmeras guerras secretas da CIA durante a Guerra Fria. Em 1993, Peter Dale Scott escreveu o livro “Deep Politics and the Death of JFK” (Política Profunda e a Morte de JFK, sem tradução para o português), demonstrando como há muita gente que sequer sabemos o nome, mas que influenciam profundamente os acontecimentos políticos. Em 2015, um jornalista da Harper’s Magazine, Scott Horton, escreveu “Lords of Secrecy: The National Security Elite and America’sStealth Warfare” (Lordes do Sigilo: A Elite da Segurança Nacional e a Guerra Furtiva da América, também sem tradução para o português). Indo a fundo na questão, resgata a história da própria Atenas – onde o debate franco e aberto sobre a guerra era essencial – e contrasta com os EUA moderno. Segundo o autor, hoje em dia, as decisões sobre guerra e paz nos EUA são tomadas entre quatro paredes, em segredo, por seletos membros de uma elite nacional.

Enfim, governo invisível, profundo ou sigiloso, não importa o nome. Independentemente de quem for eleito o representante do povo, eu aposto que “a máquina da guerra seguirá girando”.

10/03/2016

"Trégua na Síria" - Coluna de 09/03/2016

Trégua na Síria

O “cessar de hostilidades” aprovado pelo conselho de segurança da ONU na sexta-feira, 26 de fevereiro, parece ter surtido algum efeito. Mas quem, realmente, está ganhando com esse cessar- fogo? Será que esse cessar-fogo não tem mais de uma face?

Por um lado, o acordo traz a possibilidade de algum alívio para os cidadãos sírios pegos no fogo cruzado de uma guerra indireta entre Síria, Irã e Rússia contra Arábia Saudita, Turquia, EUA e outros. Mas por outro, serve como um breque para um conflito que agora está tendendo para uma vitória do Exército Sírio. Com o apoio da força militar russa – aviões modernos, mísseis de longo alcance e capacidade de observação por satélites – o governo de Bashar Al Assad foi capaz de se recolocar na ofensiva contra os grupos que querem derrubá-lo. E os grupos que querem derrubá-lo são apoiados pelos países que mencionei acima.

Diversos representantes do governo dos EUA, de uma forma ou outra, alertaram que a Arábia Saudita é a principal financiadora do terrorismo global, entre eles Bob Graham, o líder da investigação sobre os ataques de 11 de setembro de 2001, e Stuart Levey, subsecretário do Tesouro Para Inteligência Financeira e de Terrorismo. O ex-embaixador dos EUA na Turquia, Francis Riccardone, disse ementrevista ao jornal britânico The Telegraph que o governo turco cooperou com a organização terrorista Jabhat Al Nusra – uma descendente direta da Al Qaeda – visando a desestabilização do governo de Assad, enquanto o governo dos EUA olhava para o outro lado. Praticamente todos os grupos terroristas que atuam na Síria foram criados após 2011. As manifestações populares parecem ter sido apenas uma cortina de fumaça para ocultar a realidade: que grupos vindos de fora da Síria entraram no país e passaram a atacar o governo de Assad. E mesmo assim, ainda hoje, os EUA insistem na narrativa de que há rebeldes “moderados”, que querem apenas mais democracia na Síria.

Vejam a posição da representante dos EUA no conselho de segurança, Samantha Power. Na reunião que aprovou o “cessar de hostilidades”, ela foi a primeira a falar. Com muita seriedade, falou sobre o sofrimento de mulheres e crianças sírias. Falou que o conflito é um dos mais brutais em uma geração. Falou da necessidade de compromisso real das partes com o cessar-fogo… E então passou a criticar os russos e sírios, e exigir a saída de Bashar Al Assad. Chegou ao ponto de acusar os russos de bombardearem alvos totalmente civis no subúrbio de Damasco. O enviado da Síria ao Conselho, Bashar Ja’afari, foi o último a falar, e prontamente rebateu tal acusação. Na realidade, tal subúrbio teria elementos da Jabhat al Nusra, e seguiu numa explicação de como lideranças da Al Qaeda formaram essa nova organização. Também ressaltou o fato de que Power simplesmente não mencionou o nome da Al Qaeda. Talvez seja vergonha, já que os EUA estão há mais de 15 anos lutando contra essa organização e não conseguiram eliminá-la. Pelo contrário, sua atuação só expandiu desde 2001.

No fundo, parece que a decisão dos EUA de apoiar os mujahidin (jihadistas) lá na década de 80, no Afeganistão, contra um governo comunista que estava se instaurando no país, simplesmente se tornou uma peça fundamental da sua política externa. Apoiar o extremismo islâmico, quando conveniente, passou a fazer parte do arsenal de medidas para estender o controle do império “excepcional” sobre o mundo. E assim chegam nessa posição esquizofrênica de, por um lado, estabelecer sistemas de vigilância orwellianos que passam por cima de direitos constitucionais, bombardear, torturar e matar em nome do antiterrorismo, e por outro, apoiar, direta ou indiretamente, inúmeros grupos terroristas!

Link do original: http://www.horadopovo.com.br/2016/03Mar/3421-09-03-2016/P7/pag7d.htm


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